São Paulo, quinta-feira, 21 de abril de 1994
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Por que e como reformar a Constituição

FÁBIO KONDER COMPARATO

Nenhuma lágrima seja derramada no sepultamento do processo de revisão constitucional. Há pelo menos cinco razões principais para se dizer que ele foi concebido no mal e sobreviveu no engodo.
1) Uma Constituição fabricada pelo órgão legislativo ordinário, em usurpação do Poder Constituinte que pertence ao povo, atribuiu ao mesmo Legislativo competência para reformá-la, em reiterada negação do princípio fundamental do regime democrático: a soberania popular.
2) Durante todo o processo revisional, mobilizaram-se múltiplos interesses particulares –dos próprios políticos, de empresários, sindicalistas, funcionários públicos e até de magistrados–, mas quase ninguém pensou no interesse público.
3) O desenvolvimento da reforma constitucional pelo Congresso provoca, irremediavelmente, situações de grave conflito de interesses, como o fato de os parlamentares votarem em questões nas quais são interessados diretos, como a desproporcionalidade representativa dos Estados na Câmara dos Deputados, o sistema eleitoral e o funcionamento dos partidos políticos.
4) O Congresso, que já não tinha condições técnicas de exercer, ao mesmo tempo, a função legislativa e o trabalho das Comissões Parlamentares de Inquérito, ainda pretendeu transformar-se, em pleno ano eleitoral, em miniconstituinte.
5) O órgão legislativo carece das mínimas condições de autoridade política para resolver questões altamente controvertidas, como a manutenção dos monopólios estatais.
Vamos, pois, encerrar o quanto antes esse lamentável episódio e pensar no processo legítimo e eficaz de se reformar a Constituição.
A indispensabilidade da reforma, bem entendido, não está ligada à preservação de privilégios corporativos nem à proteção de interesses particulares. Ela vincula-se a uma só finalidade, de cuja realização depende, porém, todo o futuro deste país. Trata-se de iniciar, seriamente, o processo de desenvolvimento nacional, vale dizer, a longa e complexa política de progressiva elevação do nível de vida e de permanente melhoria da qualidade de vida de toda a população brasileira.
É claro que as Constituições, por si sós, são incapazes de promover o desenvolvimento nacional. Mas não é menos óbvio que, tendo por objeto a organização do sistema político, as regras constitucionais podem facilitar ou dificultar, enormemente, a realização de programas de ação governamental.
Analisada sob esse aspecto, a Constituição de 1988 representa seríissimo obstáculo ao nosso desenvolvimento. Ela tornou quase impossível a estabilização monetária. Ela desestruturou ainda mais o já combalido sistema federativo.
Ela impede, pela própria lógica do sistema, a realização de políticas públicas de longo prazo e longo alcance, ao subordiná-las, inelutavelmente, às injunções eleitorais, às ambições pessoais de governantes, aos interesses privados, ou simplesmente às pressões da conjuntura. Ela multiplicou regras inconsequentes e irresponsáveis de bem-estar social, além de criar o mais desastroso sistema financeiro que já tivemos, em toda a nossa história de país independente.
Se a reforma constitucional é, portanto, urgente e imprescindível, importa fazê-la de forma politicamente legítima e tecnicamente eficaz. Essa forma consiste na convocação de uma assembléia de representantes do povo, totalmente separada do Legislativo e encarregada unicamente de reformar a Constituição. Os seus integrantes não deveriam ser membros do Congresso Nacional nem poderiam candidatar-se, nas eleições subsequentes, à Câmara ou ao Senado.
A assembléia revisora não deve ser muito numerosa. Um máximo de 200 componentes seria o ideal, mas eles deveriam ser eleitos segundo critério rigorosamente proporcional ao eleitorado de cada Estado, reservando-se não mais do que um representante para os eleitores dos Estados em que não se alcançasse o quociente eleitoral.
Para a criação dessa assembléia revisora é obviamente preciso votar uma emenda constitucional, com observância das regras constantes do art. 60 da Constituição em vigor. Seria no entanto imprescindível, à vista das confusas discussões já havidas, que a emenda explicitasse claramente, como limites materiais da reforma, os direitos fundamentais e os princípios básicos da Constituição reformanda, bem como definisse o calendário e as regras do processo revisional.
Por tudo isso é de se lamentar e estranhar que o atual governo federal, a alguns meses apenas da expiração de seu mandato, insista em recuperar o processo revisional moribundo. Parece óbvio que as eventuais alterações na Carta Política, extraídas do Congresso na undécima hora, não surtirão efeito senão a médio e longo prazos. Não há como salvar, antes das eleições de outubro, o atual plano de estabilização monetária.
Diz-se, no entanto, que o presidente está, realmente, decidido a contribuir para a melhoria das condições de governabilidade do país. Se assim é, ele melhor faria se empenhasse a elevada autoridade de seu cargo na realização de uma reforma constitucional legitimamente democrática, ou seja, exercida por um órgão eleito pelo povo para essa finalidade exclusiva e não preocupado com a defesa de seus próprios interesses.

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