São Paulo, sexta-feira, 22 de abril de 1994
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Poesia de Murilo Mendes sofre de prosaísmo

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Aeditora Aguilar publicou agora a "Poesia Completa e Prosa" de Murilo Mendes (1901-1979), naquelas suas edições de capa verde e papel-bíblia: 1.754 páginas.
Há duas semanas ando lendo e relendo o livro, me embalando e me aborrecendo, gostando e desgostando.
Talvez um só artigo não seja suficiente para avaliar a obra desse poeta. Há muita coisa a comentar sobre Murilo Mendes, um dos "tetrarcas" da poesia moderna brasileira, para usar o termo de José Guilherme Merquior na introdução do volume.
Merquior gostava de Murilo Mendes e era um crítico inteligente. Mas que falta de gosto ao escrever. "Tetrarca" da poesia brasileira.... cáspite! Leia-se isto:
"Murilo converte a estética da surrealidade numa poética da palingênese, rejuvenescedora e lustral". Ou: "A dionisação do motivo órfico, tão patente na última poesia de Murilo, veio enfim dramatizar e consumar aquele saturnalismo que perpassa no utopismo a sua religiosidade, o seu desrespeito básico por toda sacralização da 'renúncia' libidinal".
É assim que Merquior escreve. Seria um samba do crioulo doido, só que Merquior não era crioulo, não era doido, nem fazia samba.
Haroldo de Campos é outro admirador de Murilo Mendes. Vejamos suas razões, publicadas em "Metalinguagem & Outras Metas" (ed. Perspectiva): "O poema de modo muriliano típico é uma espécie de gerador interativo de sintagmas, que se escandem completos e acabados, uns após os outros, articulados por uma comparatória capaz de lobrigar a concórdia na discordância...".
Gosto desse "lobrigar". E todo mundo se achando moderníssimo, na ponta da vanguarda...
Passemos a Murilo Mendes. Menos lido do que Drummond, João Cabral, Manuel Bandeira ou Vinicius, Murilo Mendes surge como o "outro", como o poeta secreto do século 20 brasileiro. Haveria mais nomes concorrendo a esse posto: Augusto Frederico Schmidt, Raul Bopp, Cecília Meirelles.
O fato é que um charme especial cerca a figura de Murilo Mendes. Basta olhar para qualquer fotografia dele. A finura do rosto, a figura de bispo, a pressão dos lábios, o negro das roupas lhe conferem a aura de poeta aéreo e irreal.
Não é por acaso que Luciana Stagagno Picchio, organizadora do livro, escreve na introdução que Murilo "foi o poeta mais integralmente poeta... que eu jamais conheci".
E Murilo Mendes sabia que era poeta. Desde 1910, quando numa noite viu o cometa Halley passando pelo céu de Juiz de Fora, estava consciente de sua vocação. Brigou com o pai por causa disso.
Creio que essa vocação de poeta determinou um dos maiores problemas (há vários) na realização da obra de Murilo Mendes.
Há, com efeito, um "poetismo" em seus poemas. Murilo sempre está partindo do pressuposto de que ele é poeta. Afirma-o, de maneira explícita, em sua obra. O resultado é muitas vezes ingênuo, infantil.
"Passam meninas cantando/ Não sabem que sou poeta/ E o amor que existe em mim", diz Murilo, em "Os Quatro elementos" (1935). Trinta anos depois, em "Poliedro", ele diz: "Ninguém ignora que os poetas habitam casas de mil celas paralelas... Estou na minha casa de mil e uma salas paralelas". Em 1930-31, ele escrevia o "Bumba-Meu-Poeta", texto em que se autovitimava pela própria superioridade.
Em "Poesia Liberdade" (1944-45), por muitos considerados seu maior livro, Murilo Mendes incorre na seguinte estrofe: "Quando o Universo se despojar de mim/ –Ai Violante!/ Novos poetas se formarão de minhas cinzas/ e a centelha da Idéia antecedente/ Será restituída à sua vida original".
Esse trecho nos transfere para outro problema na obra de Murilo Mendes. Além da certeza de ser poeta, atrapalha-o um enorme prosaísmo na escrita. Inúmeros poemas seus se acreditam poéticos demais e são poéticos de menos. A prosa, a prosa mais prosaica, invade seus versos.
Leia-se, por exemplo (mas exemplos não faltam), um poema seu sobre o Aleijadinho ("Contemplação de Ouro Preto", 1949-50): "Seus ornamentos sóbrios sintetizam/ Do barroco mineiro a austera força". Prosa de catálogo. Ou sobre o poeta Alphonsus de Guimaraens: "As soluções transcritas por tua lira/ Balançando invenção e liberdade/ Que não excluem orgânico rigor..." ruim demais.
Não se trata de passagens infelizes, pinçadas por simples espírito de crueldade crítica. Os próprios entusiastas de Murilo Mendes ressaltam a intenção antimelodiosa, "dissonante", de seus versos.
Entramos aqui numa discussão teórica. O próprio Murilo Mendes disse que seus versos se inspiravam mais na música assimétria, moderna, angulosa de Stravinsky do que nas concordâncias eufônicas, nas harmonias de som do classicismo –e ele era um fanático de Mozart.
A questão não é simples. Quanto se faz uma poesia melodiosa cheia de encantos verbais, corre-se às vezes o risco de cair no kitsch. Mas quando se quer fazer poesia "dissonante", modernamente áspera e abrupta, é ainda o modelo musical o que fundamenta a tentativa.
Mas quando o verso perde o ritmo, quando não conduz o poema, e é apenas conduzido pela intenção do autor, não temos "dissonância" nem "modernidade" melódica. Temos um verso que se afrouxa em prosa. E é isto o que ocorre, infelizmente, em muitos poemas de Murilo.
Lendo suas obras completas, topo com incontáveis exemplos disso. "Até quando deverei opor a minha nudez ao mistério da Tua insaciabilidade?" pergunta o autor de "A Poesia em Pânico". Bom, a poesia só podia estar em pânico com versos assim.
Mário de Andrade, num artigo severíssimo sobre "A Poesia em Pânico", reprovava o descuido rítmico do livro. E faz uma observação muito exata, ou pelo menos me deu a alegria de ter sentido a mesma coisa: os poemas de Murilo Mendes melhoram se os lemos depressa. Experimentar lê-los em voz alta, devagar, piora. Recomenda-se, assim, uma velocidade de cinema mudo. A questão da sonoridade, ou apenas do ritmo dos versos, é entretanto apenas um aspecto da avaliação de um poema.
Murilo Mendes é admirado, sobretudo, pelo impacto visual, plástico, de seus textos. A força das imagens, explodindo em cada linha, pode compensar com um ritmo imaginário a deficiência do ritmo verbal.
Ainda nesse ponto, Murilo Mendes é capaz de acertos e de erros equivalentes. Suas imagens às vezes são bonitas, ousadas, coloridas; outras vezes, banalíssimas. "As nuvens jogam boxe/ Ainda não estamos habituados com o mundo/ Nascer é muito comprido" opõe-se à puerilidade de "Chacais hienas e urtigas invadem a alma dos ditadores".
Uma percepção misteriosa, sintética –"Só vemos o céu pelo avesso"– contrasta com a pesada obviedade religiosa de "eu digo ao pecado: tu és meu pai./ Eu digo à podridão: tu és minha irmã."
Desconfio que a carreira poética de Murilo Mendes sofreu um declínio constante, sem que ele se desse conta disso. Ele queria voar cada vez mais alto, e piorava.
Mas meu espaço está acabando. É chato sentir-se chato e crítico diante de poeta tão admirado. Espero voltar ao tema em outra oportunidade, de forma mais favorável a Murilo Mendes.

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