São Paulo, sábado, 23 de abril de 1994
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Donos do mundo disputam guerra perdida

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Os historiadores vindouros registrarão um dia nos seus tomos, ou disquetes, que finalmente, no ano da graça de 1994, os americanos descobriram que o futebol era a guerra mais bonita que o homem jamais havia inventado.
Haviam resolvido, devido a uma iluminação tardia mas bem-vinda, ser anfitriões da Copa do Mundo, por sentirem que só no dia em que eles próprios vierem a guardar um Hall of Fame, a Copa propriamente dita é que ocupará o lugar que já imaginam seu, de senhores do mundo e do fim da história. Porque a própria União Soviética, ai de mim, implodiu, desmoronou, mas nenhuma das seleções filiadas à Fifa vai de repente perecer de "nitchevô" ou "glasnost".
O que é que até agora tem impedido os americanos de se dedicarem ao mais ecumênico dos esportes? Herdeiros que eles são da civilização inglesa, adotaram praticamente todos os jogos da mãe-metrópole, exceto, precisamente, o futebol.
A variante do futebol que se pratica na universidade inglesa de Rugby, e que se joga às vezes com o pé, mas sobretudo com as mãos, foi adaptada e chamada simplesmente "football" nos Estados Unidos.
Mas o verdadeiro futebol, aquele que, à exceção do goleiro e de quem lança uma lateral, só pode ser jogado com os pés e que tem algo de um balé da Idade da Pedra (Rondon assistiu no princípio do século a um jogo de bola de caucho dos índios parecís), esse, entre todos, foi ignorado. Como se o príncipe se casasse com as irmãs malvadas e deixasse Cinderela no borralho.
Desconfio que os americanos preferem os jogos em que a força física, o desenvolvimento atlético, vêm em primeiro lugar. No basquete eles exageraram tanto que não podem mais jogar contra times estrangeiros. Nenhum outro país dispõe da coleção de gigantes necessária para enfrentar os Magic Johnsons americanos, que, sobretudo quando jogam contra povos meio nanicos, enfiam a bola no cesto com o gesto enfadado de quem sacode a cinza do cigarro no cinzeiro.
Assim também o beisebol, primo violento do críquete, exige atletas, que acabam entronizados no Baseball Hall of Fame de Cooperstown, Nova York.
Enquanto isso o futebol apaixona e comove o mundo inteiro porque, se certamente exige fôlego e saúde, só exige, além disso, habilidade, ligeireza, uma certa malícia.
Ele não tem nada contra os hercúleos, os altões, que representam uma virtual vantagem para o time na hora das cabeçadas e dos empurrões à porta do gol. Mas é provável que o dito popular "tamanho não é documento" venha dos campos de futebol, porque nesses campos não é mesmo.
Todos os homens com alma guerreira e desejo insopitável de uma glória conquistada ao sol têm nos maracanãs da terra seu palco e seu pódio. O futebol é o esporte que abre os braços aos Mané Garrincha, aos Dener, que mal chegava a 1m70 de altura, aos Charlie Chaplin da espécie.
Seria exagero eu dizer agora que o futebol é sustento espiritual dos fracos diante de opressores? Um Davi, com sua funda e sua pedra, derrubando Golias, que, segundo minha Bíblia, "trazia caneleiras de bronze nas pernas" e era "da altura de seis côvados e um palmo", isto é, um genuíno jogador de basquete?
Até alguns dias atrás eu hesitaria antes de falar no futebol como fonte de resistência patriótica. Mas o Matinas Suzuki Jr. voltou da Catalunha traçando este perfil do Futebol Clube Barcelona: "Durante os anos franquistas, com a supressão de várias manifestações culturais catalãs –inclusive o ensino da língua– o time de Barcelona passou a ser a única válvula de escape para a expressão da identidade regional. Você pode imaginar, por exemplo, o peso (...) que alcançava uma vitória sobre o Real Madrid –considerado como o clube oficial do regime franquista".
Parece que o Banco da Catalunha não se nega a socorrer o "Barça" numa emergência, mas o clube se apóia nos 108 mil sócios que garantem a contratação de grandes grandes do mundo, para manter o alto espírito de resistência da Catalunha. Esse espírito sem dúvida orienta as escolhas do clube. Do Brasil levaram, apenas, Romário.
O livro e a bola
Estava eu juntando meus parcos conhecimentos futebolísticos quando vi, a propósito do manuscrito de "Le Premier Homme" -o romance que Camus rascunhava ao morrer num desastre de automóvel em 1960- que, além da literatura e das mulheres, sua paixão era o futebol.
Foi goleiro de um time na sua Argélia natal e, já na França, jogou no Racing Club de France. "Tiens!", como dizem os franceses quando alguma coisa os espanta. Camus terá engolido horrores no seu arco para chegar, no romance, a "O Estrangeiro" e a "O Homem Revoltado" na filosofia.
No Brasil, creio que só um intelectual foi realmente jogador de futebol. Eu me refiro a Marcos Carneiro de Mendonça que, antes de se tornar conhecido como historiador, foi goleiro do Fluminense e da seleção nos anos antigos do amadorismo. Vi outro dia, no "Mais!", que Osman Lins, na sua juventude recifense, jogou no gol, como Camus, antes de nos dar "Avalovara".
No momento presente temos, apaixonado pelo futebol, jogador nas horas vagas, o autor de "Fazenda Modelo" e de "Estorvo", ficção, o poeta e músico de "Construção" e "Ela Desatinou". Chico criou seu próprio campo, em Jacarepaguá, e lá mantém uma relação concreta com a bola.
É caso único, mesmo que olhemos para trás em busca de outros escritores futebolistas. Augusto Frederico Schmidt era um ardente botafoguense e, salvo erro, foi quem deu ao clube seu símbolo de Estrela Solitária.
José Lins do Rego era capaz de matar pelo Flamengo, assim como Nelson Rodrigues de morrer pelo Fluminense. Mas, exceto nas peladas de todos nós, não me consta que tenham tido nada a ver com o futebol real, de chuteira e grama.
Exorcismo
Digamos, para encerrar o assunto dos Estados Unidos e sua relação cerimoniosa com o esporte das multidões, que só uma tropa incontável, um inconcebível rebanho, uma inimaginável manada de zebras pode fazer com que os Estados Unidos ganhem a Copa do Mundo de 1994.
Isto não pode acontecer. Os Estados Unidos são anfitriões por uma questão de polidez e marketing. Não são do ramo e, portanto, na melhor das hipóteses, vão ter que esperar muito pelo caneco. Mesmo porque, a "hubris", o cego orgulho que se apoderaria dos americanos em caso de vitória, causaria danos irreparáveis ao país e à sua política exterior de gendarme do mundo, guardião das liberdades universais. Não vencerão. Assim seja. Vade retro. T'esconjuro.

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