São Paulo, sexta-feira, 29 de abril de 1994
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Aquém de Marrakech

JOSÉ SARNEY

O Gatt (Acordo Internacional de Tarifas e Comércio) foi um organismo criado para evitar a lei da selva no comércio internacional. Ultimamente não era lugar para muitos consensos. Há sete anos arrastava-se a chamada Rodada Uruguai. Em novembro do ano passado, realizou-se em Motenvidéu, com a presença de Peter Sutherland, diretor-geral do Gatt, uma reunião com os chanceleres do Grupo do Rio, que terminou numa chamada "Declaração de Montevidéu" que, diplomaticamente, jogou com a barriga.
O problema central é que os Estados Unidos, a CEE e o Japão praticavam acordos bilaterais, ameaçando de colapso o sistema internacional. Sutherland pediu aos latino-americanos políticas de abertura e elogiou-as, dizendo que elas contrastavam com o protecionismo seguido pelos países industrializados do hemisfério Norte.
Agora, em Marrakech, cria-se uma outra entidade que se chama Organização Mundial do Comércio, a OMC. Mexer com comércio internacional é mexer num vespeiro. Diga-se interesses gigantescos, e as tarifas constituem um instrumento forte, de que se valem os países desenvolvidos para protegerem seus mercados. Ao mesmo tempo, tem força de coação sobre os países fracos para impor-lhes políticas que beneficiem e reclamem de proteções que eles praticam, mas que não aceitam nos outros.
Ao apagar das luzes, nessa Marrakech que desperta sedução e mistério, do velório do Gatt os países desenvolvidos lançaram uma bomba. A chamada "cláusula social", isto é, tarifas à parte, os países desenvolvidos, em sua generosidade e respeito aos direitos humanos, propunham cortar as importações de países que praticassem baixos salários, o que eles chamaram de "dumping social".
O exótico é que são eles mesmos que julgam os baixos salários. É mais uma vez o biombo de uma nobre causa, escondendo interesses inconfessáveis. A melhor maneira que eles teriam para melhorar os salários do Terceiro Mundo seria não levar a preços críticos, cada vez menores, as matérias-primas que nos compram, os juros que nos cobram, as sanções e ameaças que nos fazem.
Lembro-me da Conferência Ecológica de Estocolmo em 1972. Ali, também, em nome da defesa da natureza, propunham-se sanções econômicas aos países depredadores do meio ambiente, sempre o então Terceiro Mundo. O nosso embaixador Miguel Osório, com bravura, separou as coisas: ecologia é ecologia, interesses econômicos são interesses econômicos. Não misturar as agendas.
Agora, vejo uma decisão acertada dos ministros do Grupo do Rio, isto é, dos países da América Latina, denunciando que atrás dessa manobra está embutido um protecionismo discricionário, cruel e injusto contra os países pobres. Como impingir pela garganta uma abertura de mercados aos países de economia frágil, quando os ricos se reservam direitos de proteção discricionários, sob o manto da hipocrisia.
O que eles querem, assim, é matar o doente para curá-lo. Querem extinguir empregos na região mais pobre do planeta para consolidar posições hegemônicas de comércio.
Se for assim, começa mal a OMC, Organização Mundial do Comércio.

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