São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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Vida doce pode servir de estímulo para mutações

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma pesquisa recente em uma universidade canadense acertou os dois proverbiais coelhos com uma só cajadada: fez uma importante contribuição teórica para a biologia e abriu o caminho para futuras aplicações em medicina.
A descoberta de um novo mecanismo para mutações genéticas em bactérias deu um importante estímulo a uma herética complementação (e não contestação) da teoria darwiniana da evolução.
Mutações são mudanças no código genético de um ser vivo responsáveis pelo surgimento de novas características que podem ou não ser benéficas.
Por exemplo, se uma mutação maluca surgisse na espécie humana que tornasse as pessoas capazes de comer terra, isso poderia salvar a vida de um indivíduo sem comida e faria a fome no mundo acabar –ou quem sabe isso criaria uma superpopulação da espécie que levaria a problemas maiores.
O que define se uma mutação é vantajosa ou não a um indivíduo, ou à sua espécie, é o meio ambiente. Para um esquimó que vive no gelo, não adiantaria nada poder comer terra, já que ele não teria acesso à essa fonte de "comida".
O naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) criou o conceito de "seleção natural" para explicar como a evolução dos seres vivos acontece tendo por base essas diferenças.
Segundo Darwin, as diferenças dão a alguns indivíduos vantagens sobre os outros, e só os mais aptos sobrevivem.
Mutações em bactérias foram o objeto da pesquisa feita na Universidade de Alberta, em Edmonton, Canadá, pela bioquímica Susan Rosenberg.
"As mutações ocorrem por um mecanismo diferente daquele que ocorre no crescimento bacteriano normal", disse Rosenberg em entrevista à Folha.
Essas mutações acontecem em células que não estão se dividindo, como seria de se esperar.
O câncer, que consiste na multiplicação alucinada de células, pode acontecer em células que naturalmente não se dividem.
Vem daí o valor potencial da pesquisa canadense.
O novo mecanismo de mutação usa genes que até agora se acreditava que não tinham nada a ver com esse tipo de processo.
Há alguns anos, pesquisadores nos EUA, principalmente John Cairns e seus colegas, sugeriram que algumas bactérias tinham a capacidade de "escolher" mutações vantajosas para se adaptarem ao ambiente.
A hipótese é uma heresia em termos darwinianos, pois o consenso entre os biólogos é que as mutações ocorrem por acaso, e um ser vivo não tem como "escolhê-las".
A hipótese lembra uma teoria alternativa para a evolução, proposta pelo naturalista francês Jean Baptiste Pierre Antoine de Monet (1744-1829), mais conhecido pelo seu título, Chevalier de Lamarck.
Para o lamarckismo, características adquiridas por um ser vivo poderiam ser transmitidas a seus descendentes.
As bactérias "lamarckistas" de John Cairns desenvolveram mutações para poder aproveitar comida disponível em abundância no ambiente, um tipo de açúcar.
"O experimento sugere que populações de bactérias tenham algum modo de produzir (ou reter seletivamente) apenas as mutações mais apropriadas", escreveu Cairns em 1988.
A pesquisa de Rosenberg dá suporte ao trabalho de Cairns, pois as mutações vantajosas só ocorreram depois que as bactérias tiveram contato com o meio, "aprendendo" a comer açúcar.
Saber se essas bactérias são mesmo "lamarckistas" vai depender de mais pesquisa. Essa é a área do estudo menos documentada, diz Rosenberg. É preciso encontrar um vínculo genético claro, uma relação de causa e efeito indiscutível, entre pôr uma bactéria em um meio com açúcar e surgirem as mutações que permitem que elas usem esse alimento.

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