São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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Os testemunhos do massacre

AURÉLIO VIRGÍLIO VEIGA RIOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Entretanto, ninguém ainda tinha chegado ao ponto de dizer, com ênfase e autoridade, tantas falsidades sobre fatos de que nada conhece como fez um senhor de nome Janer Cristaldo, que se diz doutor em letras francesas, na Folha do último domingo (24.05), de que serviu para publicar no caderno Mais! um artigo de "menos!" denominado "Os bastidores do ianoblefe".
Em respeito aos leitores da Folha, é necessário restabelecer a verdade sobre os fatos comprovados relativos à chacina de Haximu.
–O primeiro ponto a merecer reparo é a insinuação maldosa de que o procurador-geral da República e o então ministro da Justiça, Maurício Corrêa, ingressaram voluntariamente em
território venezuelano.
–Após o anúncio do massacre de índios ianomâmi pela imprensa, acompanhei essas autoridades ao Pelotão de Infantaria da Selva em Surucucus, dentro da área indígena ianomâmi em Roraima. Na reunião do Comando do Pelotão com pilotos da FAB, foi plotado no mapa do exército o local em que teria ocorrido a chacina, com a garantia dada pelos militares de que a área se encontrava na faixa de fronteira, em território brasileiro.
–Portanto, se houve invasão da Venezuela ela se deu por imprecisão nas informações transmitidas pelos responsáveis pela guarda de nossas tênues fronteiras amazônicas.
Feito o levantamento "in loco" das provas colhidas em Haximu –duas malocas destruídas e uma ossada humana encontrada num tapiri – foi instaurado inquérito policial para apurar os fatos na Polícia Federal em Roraima.
–Após 30 dias de exaustivas investigações, o delegado Curtrim, que presidia o inquérito, apresentou bem fundamentado relatório sobre a chacina ocorrida em Haximu, dentro do prazo legal, com base em farta prova testemunhal, em três laudos periciais, com dois dos autores confessos do genocídio presos por ordem do juiz federal de Roraima.
–A exemplar ação da Polícia Federal neste caso foi acompanhada pelo sereno e eficiente trabalho de três procuradores da República, especialmente designados para o caso, que formularam uma extensa denúncia contra quatro garimpeiros por sete crimes diferentes, desde contrabando, ocultação de cadáver até formação de quadrilha ou bando, além do genocídio.
Quanto aos outros 19 integrantes do bando que participaram do massacre, não foi possível, até hoje, identificá-los e denunciá-los à Justiça, pois dele só se conhece a alcunha.
O crime de genocídio caracteriza-se no plano do direito internacional como delito contra a humanidade. Inicialmente previsto na Convenção Mundial para a Prevenção e Repressão do crime de Genocídio (ONU, 1948), como reflexo do julgamento dos crimes perpetrados pelos nazistas no Tribunal de Nuremberg, tinha como característica a possibilidade de intervenção da ONU em Estados soberanos desde que, comprovadamente, estes estimulassem ou fossem coniventes com práticas genocidas.
Somente a partir do advento da Lei nº 2.889/56 foi incorporado ao ordenamento jurídico interno um outro tipo penal do genocídio, quando se passou a punir a ação de pessoas físicas (não de governos) que, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, matar membros do grupo, causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo.
–Foi com base na nossa lei penal – e não em convenção internacional – que ficou caracterizado no processo judicial o genocídio praticado por alguns garimpeiros contra pessoas da etinia ianomâmi da aldeia de Hwaximeutheri – a quem não conheciam pessoalmente e contra quem não tinham razão econômica ou política de ter hostilidade, a não ser pela só condição de serem índios.
–Se o ódio ou a intolerância racial não for o motivo da barbárie, como então justificar a morte cruel e insidiosa de três velhos, quatro mulheres e cinco crianças ianomâmis, que não tinham nenhum contato direto com o bando genocida?
–Mas, onde estão as provas materiais do genocídio? – indagam os novos especialistas em processo penal. Elas estão evidentemente nos autos do processo criminal, que nenhum de seus detratores teve a paciência de ler.
–Está no exame de corpo de delito realizado pelo Instituto de Criminalística da Polícia Federal em Brasília, que atesta a morte violenta de uma jovem índia, entre 18 e 22 anos, por disparos de arma de fogo do tipo espingarda. Está no laudo de exame de lesões corporais em três sobreviventes feridos do massacre, dentre os quais uma criança de cinco anos atingida no olho direito por projéteis (chumbo) disparados por uma carabina 12.
Apesar das cremações dos corpos dos índios mortos terem destruído parte dos vestígios e do corpo de delito, estes não desapareceram de todo, de acordo com a tradição ianomâmi. A perícia tècnica examinou cinzas mescladas com 118 fragmentos de ossos carbonizados, dois dentes semicalcinados e fios de cabelos, tendo os senhores peritos afirmado que o material serviria com amostra padrão de ossos carbonizados sabidamente humanos.
–Os depoimentos de seis índios sobreviventes ao massacre, traduzidos por funcionário da Funai, com grande conhecimento da língua e costumes dos índios ianomâmi, confirmam inteiramente a materialidade do crime, tal como constou da denúncia. E disso nem mesmo o sr. José Altino, representante maior dos garimpeiros da Amazônia, ousa duvidar, conforme ele próprio declarou no inquérito policial.
–Além dos depoimentos dos índios, os réus confessaram sua participação no crime. O denunciado Pedro Prancheta afirma, sem remorso, que eles "saíram no rastro dos índios e após três horas de caminhada encontraram umas barraquinhas no meio da mata e alí estavam os índios, onde haviam algumas crianças brincando, ocasião em que os garimpeiros ficaram todos de um lado e atiraram por alguns minutos matando todos os que alí se encontravam, tendo sabido, através de "Japão" que "Goiano Doido" meteu uma faca numa criancinha, e ele só ouviu ela gritar e logo após saíram todos correndo com medo dos outros índios em direção às malocas e na ocasião atearam fogo nas mesmas, antes porém deram vários tiros em panelas e em tudo que viam pela frente e em seguida retornaram aos seus barracos".
–Outro ponto equivocado do eminente jurista é o de questionar as fotos das cabaças contendo as cinzas como meio de prova idôneo. As fotos tomadas isoladamente, talvez não. No caso, elas são mera manifestação visual de um processo ritual de cremação amplamente registrado e atestado num laudo antropológico e cuidadosamente elaborado, o qual, dentro de um auto de constatação, constitui meio de prova pericial expressamente admitido no Código de Processo Penal.
–Comprovada a existência do genocídio e de sua autoria, por que a Justiça brasileira estaria processando garimpeiros brasileiros que cometeram crime contra a vida de índios ianomâmi na Venezuela?
–Por uma simples razão. Há um velho princípio conhecido como extraterritorialidade
incondicionada da lei brasileira previsto no art. 7º do Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei 2.848 de 1940), onde são arrolados os crimes que ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro. Dentre eles destacam-se os crimes praticados contra a vida ou a liberdade do presidente da República e o de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliano no Brasil.
–A razão prevista para tais exceções à regra da aplicação da lei brasileira em território nacional funda-se na circunstância de esses crimes ofenderem bens juríricos de capital importância, afetando interesses relevantes do Estado e sua aplicação não estar subordinada a qualquer requisito, nem mesmo à prévia autorização pelo país estrangeiro onde for praticado o crime. (Vide entre outros Damásio de Jesus, no seu Código Penal Anotado).
–Quanto ao receio de muitos de que a demarcação de extensas áreas indígenas nas faixas de fronteira venha a provocar o desmembramento do país ou a intervenção de forças estrangeiras, é bom que se diga, em nome da verdade, que a Constituição Federal reconhece aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, estejam ou não situadas nas faixas de fronteira, e garante às comunidades indígenas o direito à posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas naturais nelas existentes, já que o domínio pleno dessas terras pertence exclusivamente à União Federal, como é o caso das terras devolutas situadas nas faixas de fronteira, consideradas essenciais à defesa do território nacional nos exatos termos do art. 20, incisos 2º e 9º e art. 231 da Constituição.
–Portanto, não há incompatibilidade nenhuma entre a demarcação de terras indígenas e a defesa da soberania nacional.
–Não se pode admitir a boa-fé numa insimuação leviana de que o regular cumprimento da lei, através da denúncia do Ministério Público Federal contra brasileiros por crime de genocídio e a consequente instrução do processo criminal, ainda em andamento na Justica Federal, poderia, em algum momento, colocar em risco a segurança do país.
–Ouso afirmar o contrário: o de que põe em risco as relações bilaterais entre Brasil e Venezuela e poderia favorecer a hipótese de uma intervenção externa no país, seria o não cumprimento das garantias constitucionais de respeito aos direitos humanos e das minorias étnicas, fundadas em tratados internacionais, que o Brasil se obrigou a cumprir.
–Se não for modificado o quadro de impunidade existente em relação aos tantos massacres ocorridos no país, seja de índios, crianças, presos ou trabalhadores comuns, poderemos assistir aqui, quem sabe, a um desfile de boinas azuis, a exemplo do que hoje acontece no Iraque e na Bósnia.
–Aos que duvidam, lamento informar que 16 índios ianomâmi morreram vítimas de um ataque covarde de invasores de suas terras. Os sobreviventes cremaram seus mortos e procuram reconstruir suas vidas. Como afirma o procurador da República Luciano Mariz Maia, um dos autores da denúncia: " Das balas dos garimpeiros os ianomâmi estão tentando se recuperar. Mas escaparão das setas envenenadas disparadas de tocaia em artigos de jornais"?

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