São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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Sartori faz faxina na teoria da democracia

GABRIEL COHN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O debate sobre a democracia está prejudicado pela confusão que se instalou na teoria. Foi essa preocupação que levou Giovanni Sartori a publicar este livro, em 1987.
Ele já havia tratado do tema em 1962. Mas foram exatamente as confrontações dos anos 60, com o avanço das posições críticas mais radicais, que no seu entender danificaram o que realmente importa numa teoria: o significado unívoco e rigoroso dos conceitos e a consistência nas relações entre eles.
A tarefa deste livro, portanto, é de faxina intelectual. É preciso varrer os cacos imprestáveis e limpar meticulosamente as peças manchadas pelo uso indevido.
Mas não é mera mania de limpeza que move Sartori. É a convicção de que a clareza nas idéias é condição básica para o próprio exercício da democracia. Na concepção de teoria a que ele adere a clara definição dos conceitos é requisito para a argumentação racional; e o exato oposto disso é o confronto "ideologizado" de concepções que ele abomina.
Em primeiro lugar, trata-se de bem demarcar o terreno do debate. A Sartori interessa a democracia na sua acepção estritamente política. E esta significa, em termos mínimos, soberania popular mais liberdades. Não basta enfatizar a igualdade, tema clássico da democracia. Não há passagem linear da igualdade para a liberdade.
Portanto, não é suficiente assinalar onde reside o fundamento do poder (a soberania popular). É preciso também assegurar-se de que esse poder tenha limites. E esses limites não são intrínsecos à soberania popular, têm que ser estabelecidos constitucionalmente, na forma de leis.
Daí a sua tese básica: só existe uma forma de democracia de que valha a pena falar, e essa é a democracia liberal. Em termos sumários, a democracia acaba sendo analisada por Sartori como um método de escolha competitiva de lideranças que respondam perante os liderados e de formação de instâncias decisórias (por exemplo, comitês) de tal modo que as decisões sejam simultaneamente eficazes e sujeitas ao controle dos cidadãos.
Grande parte do esforço de Sartori consiste em fixar algumas distinções básicas: entre concepções normativas e concepções descritivas por um lado, e entre questões de forma e questões de conteúdo no tocante à organização política, pelo outro. Seus adversários ("trata-se de uma guerra" escreve ele em certa passagem) ele os encontra sempre no campo dos críticos radicais à "democracia burguesa" (ou "capitalista" , ou outra qualificação desse tipo, com algum tipo de inspiração marxista).
Bons tempos, suspirarão alguns, quando era o avanço do marxismo, real ou suposto, que ainda mantinha teóricos liberais em sobressalto; em trabalhos mais recentes Sartori já se pergunta se a democracia liberal, que vê como vitoriosa, saberá "resistir a si mesma" , saberá jogar bem o seu jogo. Para ele o radicalismo dos anos 60 teve efeitos danosos na teoria democrática, não tanto por ter demolido algo mas por ter gerado a confusão nas idéias. Daí o empenho em recompor as bases do debate.
Sartori distingue entre o que é formal e o que é substantivo na organização política para melhor poder combiná-los, contestando assim a desqualificação do "meramente formal" em nome do "substantivo". Formal (isto é, relativa a uma forma de estado e ao modo como devem ser criadas as normas que obrigam a todos) é a dimensão normativa do liberalismo. Substantiva (isto é, relativa ao caráter social do estado e ao conteúdo que deve ser estabelecido nessas normas) é a dimensão normativa da democracia.
Ambas as dimensões remetem a ideais fundantes: a liberdade e a igualdade. O problema de uma boa concepção de democracia política consiste em combin\a-las sem confundí-las, e de um modo que aponte para soluções institucionais viáveis e não apenas desejáveis.
Nesse mesmo compasso valores e fatos devem ser distinguidos, mas também tendo em vista algo mais do que sua mera separação. Também aqui importa o vínculo bem concebido. A questão central em Sartori é: "como e em que medida ideais são realizados e realizáveis?" Dar conta disso, no plano teórico, implica encontrar um modo de reamarrar vertentes em que se dividiu a teoria democrática empírica por um lado e normativa pelo outro, para construir uma teoria que seja simultaneamente descritiva e prescritiva.
Nessa mesma linha, Sartori recusa quaisquer argumentos a favor da democracia (ou de outras propostas) em termos absolutos. A racionalidade prudente recomenda a solução democrática em termos estritamente comparativos, no confronto com todas as outras, começando pelo seu exato oposto, a autocracia.
Não é casual que Sartori seja sensível tanto às distinções analíticas quanto aos problemas das adequadas recombinações dos termos. A insistente busca do rigor nos termos traz a marca de uma formação próxima às correntes da filosofia analítica de língua inglesa (o que deve ter facilitado sua assimilação pelo ambiente acadêmico norte-americano).
Mas, ao mesmo tempo, ele não é italiano à toa. A grande tradição do realismo político, que desemboca neste século nos grandes "elitistas" como Mosca, Pareto e Schumpeter, também está muito presente nele, temperada pelas preocupações liberal-democráticas.
Mas que não se espere dele a urbanidade de um Bobbio, nem mesmo o sarcasmo certeiro de um aristocrata como Pareto. Em Sartori a lucidez, marca do pensamento refinadamente reflexivo de um Bobio, é substituída pela busca da clareza, entendida como traçado preciso e unívoco das fronteiras entre posições em confronto. É na combinação desses traços que reside o interesse da argumentação dura e provocante deste livro, que realmente vale a pena ler.

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