São Paulo, segunda-feira, 2 de maio de 1994
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Os médicos no espelho

MÔNICA DE ALMEIDA MOGADOURO

Considero muito positivo o novo surto de discussões acerca da ética e do corporativismo médicos. Quem sabe isso possa contribuir para que essas questões algum dia deixem de ser tratadas como prerrogativas de uma sociedade secreta.
Penso que nossos (dos médicos) maiores problemas devam-se à convivência de imagens sociais muito contrapostas. A imagem que temos de nós mesmos, e que compartilhamos com toda a sociedade, ainda guarda muito de onipotência dos que possuem um conhecimento hermético, mágico. Assim, não podemos errar e também não podemos nos sujeitar ao julgamento dos mortais.
Na vida real somos trabalhadores assalariados em processo de empobrecimento (como a quase totalidade dos brasileiros) e tentamos as mesmas saídas: aumentar fontes de renda, reduzir gastos, espremer horários.
Na vida real, andamos apertados em ônibus e metrôs, dormimos pouco, comemos mal e partilhamos com os demais trabalhadores de saúde um dos ofícios mais insalubres, do ponto de vista psicológico, que é conviver com a dor e a morte.
Há pouco tempo me contaram de um colega que não mora mais: tem diversos empregos, paga pensão aos filhos, foi despejado; dorme nos hospitais onde trabalha ou no carro, não consegue pagar aluguel.
A formação do médico é caríssima para sua família e para a sociedade: seis anos no mínimo em período integral. Ainda quando ela é tecnicamente muito boa, não nos prepara para o enorme grau de convivência com o sofrimento a que somos submetidos diariamente.
Nos serviços públicos de saúde, onde seria desejável que estivessem os profissionais mais experientes, o salário é aviltante (cerca de CR$ 200.000,00 em março). As condições de trabalho precaríssimas nos coagem à posição de cúmplices de um sistema perverso.
Por tudo isso, não compreendo como podemos sair dessa "crise de identidade" pela via corporativista. Do que temos tanto medo se a maioria de nós não comete erros graves, não estupra pacientes e não opera desnecessariamente?
Não somos semideuses. Somos trabalhadores de saúde, possuímos um saber técnico complexo e de enorme utilidade. Deveríamos colocá-lo a favor de uma ampliação dos níveis de consequência que as pessoas têm de sua saúde, no sentido de que apropriam-se do que sentem e sofrem.
Temos dois aliados: nossos pacientes e colegas trabalhadores da saúde. Uma aliança entre todos faria da Saúde Pública um alvo menos fácil de todos ou alguns que a ameaçam.

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