São Paulo, segunda-feira, 2 de maio de 1994
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A ilusória revisão exclusiva

LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES

Diante do malogro da revisão constitucional, avolumaram-se nos últimos dias as iniciativas de segmentos da sociedade no sentido de conseguir uma assembléia revisora exclusiva. Nesse sentido, são paradigmáticos o artigo do eminente jurista Ives Gandra Martins (Folha, 27/04) e, pela sua importância, o editorial da Folha do dia seguinte.
Convicto da necessidade da revisão, não participo da mesma crença no tocante à possibilidade de convocação e da utilidade de uma assembléia exclusiva. O professor Ives Gandra acredita que numa assembléia revisora teríamos pessoas não motivadas por seus "próprios interesses políticos", que voltariam a seus "afazeres particulares tão logo encerrada sua patriótica tarefa". Um dos problemas, aqui, é saber como fazer para que apenas "pessoas patrióticas e desinteressadas" se candidatassem e os eleitores as escolhessem.
O editorial da Folha, por outro lado, sugere, para desestimular os que pretendem fazer carreira política às custas da revisão, que os membros de um tal "colégio de cidadãos" ficariam proibidos de concorrer às eleições parlamentares. Mas, mesmo que estivessem também proibidos de concorrer a postos executivos, nada garante que teríamos um texto constitucional mais adequado. O que é correto para uns não o é para outros porque política é jogo de poder, conflitos de interesses delimitados por marcos ideológicos e valorativos.
Para uma grande parte da esquerda, dos nacionalistas e da maioria dos parlamentares eleitos em 1985, a Constituição de 1988 não pareceu tão má. Na verdade, ela atendeu às pressões de diferentes lobbies e refletiu uma visão ideológica e uma repartição de forças dominantes na época e que, em larga medida, ainda existe hoje. Foi por esse motivo, e não por preguiça e falta de patriotismo dos atuais congressistas, que a revisão não saiu. Quando se trata de questões que lhes interessam, os parlamentares não são nada indolentes.
Obviamente, os membros de uma revisão exclusiva não ficariam mantidos numa redoma de vidro, resguardados de pressões "indevidas" da sociedade. Os grupos de pressão continuariam a atuar, com tanta ou mais força, como na elaboração da Constituição de 1988. Mas, mesmo que fosse possível proteger os revisores do vírus dos grupos políticos e dos lobbies, cada um deles traria para a assembléia opiniões, valores e interesses seus e de suas regiões, camadas sociais, igrejas, partidos etc.
Não se pode acreditar que, numa assembléia exclusiva, todos partilhassem das mesmas idéias e dos mesmos credos. Haveria discordâncias, disputas, acordos e barganhas entre facções que fatalmente se estabeleceriam.
Este final é tanto mais previsível quanto se pode imaginar que os diferentes partidos e grupos de interesses dificilmente ficariam indiferentes diante da eleição para uma assembléia que, ao que tudo indica, faria praticamente uma nova Constituição. Assim, a presença dos grupos de pressão e dos partidos é tanto mais previsível quanto os custos de cada campanha deverão ser elevados.
Poucos candidatos, mesmo os mais idealistas, patriotas e ricos, arcariam sozinhos com as despesas para uma tarefa parlamentar de curta duração que, ainda por cima, iria interditar sua eventual eleição para uma função muito mais vantajosa e duradoura na Câmara dos Deputados ou no Senado.
Mas imaginemos que, ao cabo dos trabalhos de uma assembléia exclusiva, tivéssemos um texto constitucional "isento de pressões", fruto de um "saber puro" e "absolutamente desinteressado". Mesmo assim, iria agradar a alguns e desagradar a outros. Não refletiria a correlação de forças políticas e seria de difícil aplicação.
Suponhamos, ainda, que os novos dispositivos constitucionais fossem significativamente contrários aos interesses da classe política e dos mais poderosos grupos de pressão. Devemos acreditar que eles seriam aplicados? Ou, se o fossem, não provocariam crises violentas?
A Constituição de 1988 foi o resultado do entrechoque de diferentes segmentos da sociedade e de facções políticas, emoldurados pela predominância de uma visão corporativa, nacionalista e intervencionista. A inexperiência de grande parte dos constituintes provavelmente contribuiu para os aspectos mais folclóricos da Constituição-cidadã. Mas não são eles os mais negativos.
A idéia da convocação de uma nova assembléia revisora deriva da mesma visão do mundo que há muito caracteriza a cultura dominante no Brasil, a mesma que influenciou a Constituição de 1988 e que persistentemente afeta nossa vida pública: a crença de que chegaremos à "boa sociedade" e a um sistema político exemplar por intermédio de "decretões" constitucionais ou de inteligentes engenharias institucionais.
Daí o permanente mudancismo legal que nada mais significa do que alterações superficiais que mantêm tudo mais ou menos como antes, mas que têm como uma das consequências manter a todo o país num estado de eterna insegurança quanto às regras do jogo futuro.

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