São Paulo, segunda-feira, 2 de maio de 1994
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Cidade, o espaço da vida

SIEGBERT ZANETTINI

O artigo "Karlmarxstrasse", de autoria de Reynaldo de Barros, secretário do Desenvolvimento Urbano do município de São Paulo, publicado nesta seção em 20 de abril último, não pode ficar sem resposta.
Primeiro, porque me cita nominalmente e mais uma vez falseia a verdade, confundindo nossas posições com as atitudes de seu grupo. Segundo, pelo teor da matéria, surrado discurso autoritário, procurando dar uma conotação comunistóide ao movimento contrário à av. Faria Lima, discurso típico de integrantes do golpe militar, de onde surgiram e do qual nunca se distanciam.
Como o próprio articulista afirma, "a enxurrada de representações, ações populares, cautelares e de inconstitucionalidade, protestos e passeatas" contam com apoio não só da OAB, CUT e Greenpeace citados, mas também do Movimento Defenda São Paulo, Ansur (Associação Nacional do Solo Urbano), Polis (Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais), Voto Consciente, inúmeras associações e sociedades de amigos de bairros, todas as autoridades eclesiásticas, o Sindicato dos Arquitetos de São Paulo, professores e estudantes universitários, a totalidade dos movimentos populares (mais de cem entidades) e partidos políticos, não só o PT e o PC do B citados, mas também PSDB, PV e PMDB.
Soma-se a adesão expressa de milhares de assinaturas ao nosso "Manifesto em Defesa da Cidade de São Paulo", onde despontam personalidades da estrutura moral, ética e cultural de d. Paulo Evaristo Arns, Antonio Candido, Ruth Cardoso, Miguel Reale Júnior, Décio de Almeida Prado, Marcelo Rubens Paiva, Bento Prado Jr., Florestan Fernandes, Fábio Feldmann, Roberto Schwarz, Otilia Arantes, Goffredo da Silva Telles Júnior, Fábio Konder Comparato, Fernando Gabeira, José Gregori, José A. Moisés, Francisco de Oliveira, Luiz Felipe de Alencastro, Luís Francisco Carvalho Filho, Beatriz Segall, Vilma Faria, Roberto Rollemberg, Pedro Dallari, entre centenas de intelectuais, profissionais liberais, deputados, vereadores etc.
É a sociedade paulista naquilo que ela tem de mais bem-informada e melhor que está contra esse anacrônico projeto e sua versão apressada e oportunista.
Está contra por não aceitar esse tipo de "progresso" a qualquer custo, destruidor de história, de memória e de relações consolidadas. Está contra porque não aceita mais modelos autoritários de gestão da cidade, não aceita mais a truculência que passa por cima de órgãos técnicos, do Legislativo e do Judiciário.
Está contra porque não aceita essa obra como prioritária numa cidade esquecida em todas as suas necessidades. A saúde está um caos, a educação, em frangalhos; 3,5 milhões vivem em cortiços, 1,5 milhão são favelados, 100 mil paulistanos moram embaixo de ponte. Enquanto isso, a prefeitura torra 80% do seu orçamento em obras viárias, caras na execução, operação e manutenção.
Está contra porque não concorda que se priorize essa obra viária numa área já privilegiada, estimulando o uso do transporte individual de baixa capacidade e mesmo do ônibus, com toda a sua clandestinidade consentida de média capacidade, em detrimento de um transporte hierarquizado, integrado e global que tenha o coletivo como objetivo.
Isto numa cidade com 250 kms de ferrovias relegados ao esquecimento pela lógica perversa da opção por um tipo de transporte que polui, faz 900 mortes e fere 42 mil pessoas a cada ano.
É contra porque defende uma cidade como um projeto cultural e coletivo a ser debatido democraticamente e expresso por meio de uma política urbana de curto, médio e longo prazos, consubstanciada em Plano Diretor.
Uma política que priorize o homem e pense o futuro de nossos filhos, com mais qualidade de vida, mais espaços públicos, mais verde, que preserve cada bairro "como álbum de família", com sua história e sua identidade, suas relações de vizinhança construídas com o esforço de gerações. O exemplo de Curitiba é um testemunho vivo e possível do que aqui se defende.
São essas questões, sr. secretário, que defendemos no referido Plano Diretor de Campinas, uma abordagem sistêmica para o desenvolvimento urbano daquela cidade e de outros 18 municípios, realizada em parceria com diversos órgãos da prefeitura, quadros da Unicamp e da Puccamp, entre outras entidades.
Esse trabalho permaneceu no nível das diretrizes estruturais, como subsídio para discussão e detalhamento posterior a ser desenvolvido pela Secretaria de Planejamento. Não contém, portanto, proposta de desapropriação de mais de cem imóveis para o alargamento de avenidas, conforme afirma o seu artigo –o que em princípio não somos contra, se visto à luz de uma visão global e planejada da cidade.
Assim como não foi previsto no Plano Diretor nenhum mecanismo do tipo Cepac (Certificado de Potencial Adicional de Construção), invenção recente da administração à qual v.sa. pertence, questão capciosamente colocada em sequência à citação a mim referida, induzindo o leitor a relacionar tal prática como adotada em nosso plano.
Não aparece ali nenhum tipo de certificado, bônus ou papel-moeda que possibilite à prefeitura especular sobre a propriedade privada, pois nos alinhamos à posição defendida pelo eminente jurista José Afonso da Silva que, no caso da Faria Lima, arguiu inconstitucionalidade sobre esse certificado, por se tratar de matéria a cargo da União, fora da competência do município.
Finalizando, não queremos que surja nem a Karlmarxstrasse, e aqui fala o presidente de uma associação que congrega milhares de bravos munícipes integrantes de um movimento político suprapartidário, composto de uma população ordeira, trabalhadora, honesta e que luta bravamente pelo resgate da cidadania, pelo respeito às leis e às instituições, na busca de um futuro mais justo, decente e igualitário.
Também não queremos que surja a "5ª avenida dos sonhos" da Prefeitura de São Paulo, mais um cenário de privilégios, fantasioso e segregador, a esconder e camuflar os bolsões de miséria e de abandono em que vive grande parte de nossa cidade.
Nós sabemos, vimos e neste quase ano e meio duelamos com o "povo", que esta administração tem compromissos, se alia e privilegia econômica e politicamente. A cidade de São Paulo está há muito a merecer uma gestão democrática à sua altura.

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