São Paulo, terça-feira, 3 de maio de 1994
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O defeito que matou Senna

JANIO DE FREITAS

De quem é a culpa na morte de um campeão como Ayrton Senna? Ou de um principiante como Ratzemberger? De quem é a culpa por acidentes em que só o inexplicável salva, por exemplo, um Barrichello? A resposta vem fácil: é um defeito no carro, ou um defeito na pista, ou defeito do regulamento, de outro competidor. É sempre um defeito material, concreto, visível. E, no entanto, isto é uma cômoda inverdade.
Na sexta-feira, ocupado com uma pilha de documentos, não pude ouvir o primeiro treino de Imola. Ao chegar mais cedo à Redação, fui direto ao meu colega Mário Magalhães, craque dos esportes: os tempos de Imola? Mário ligou para a Redação de São Paulo. Nem treinos nem corridas me dão ansiedade. Apenas gosto de ver, quando ocorre, habilidade e inteligência integrando-se na criação, em frações de segundos, de desenhos espaciais que disputam entre si. Do ponto de vista apenas visual, é um fascínio muito próximo do exercido pelos fogos de artifício em todo mundo.
Dessa vez foi diferente, como já acontecera eventualmente. Não me interessava a classificação, estava ansioso pelos tempos. Os tempos iam dar o sinal da vida ou a dimensão do risco. Se a distância entre Senna e Schumacher fosse razoável, estes dois praticantes da afoiteza ilimitada iriam, acima de tudo, controlar as respectivas situações. Se muito pequena, um, a todo custo, tentaria manter a supremacia inesperada no campeonato; o outro, a todo custo, buscaria a supremacia inesperadamente usurpada. Para uma competição de máquinas e pilotos, isto não seria inquietante. Mas se tratava de uma guerra de temperamentos semelhantes demais: agressivos, voluntariosos, implacáveis. A diferença dos tempos, soube mais tarde, foi exatamente igual a um piscar de olhos normal: haveria dois gladiadores na arena de Imola.
Isto não seria errado, nem certo. Simplesmente, é assim nas corridas. Sempre foi assim. É preciso vencer, porque é preciso encontrar a fama tão desejada, o reconhecimento, a admiração e, como consequência lógica, a fortuna material. Mas, nesta busca, vencer não basta: igual ou maior do que o desejo de vencer é a necessidade de derrotar. Creia: os sentimentos de vencer e de derrotar são muito diferentes. A procura do primeiro pode ser racional. A do segundo nunca o é. Vem das profundezas mais obscuras, uma força que não se oferece sozinha à compreensão, sequer à percepção. Por isso, que admirável, embora inútil, a percepção de Ayrton em uma distante entrevista: "Eu não me conformo em ser segundo, há alguma coisa dentro de mim que não se conforma com isso, nunca".
Esta pressão interior não é igual, na intensidade nem na forma de manifestação, em todos os corredores –já que falamos só deste, e não de outras competições de risco. Mas é a força predominante em todos. Barrichello, com seu ar de menino suave e bem comportado, é excelente ilustração disso. O seu acidente de Imola não começou na entrada do pequeno esse construído para deter a velocidade. Começou no seu pódio japonês em Aida. Quando ele entrou no pequeno esse, de Imola, em velocidade excessiva e incontrolável, vinha impulsionado pelo êxito do seu terceiro lugar em Aida, que liberara dose maior da pressão interior, sob a forma de maior autoconfiança.
Vencer a qualquer custo, derrotar a qualquer custo. Neste jogo, o defeito no carro, ou na pista, ou no regulamento, não é mais do que intermediário. É como o revólver e o punhal, inofensivos se não houver quem os faça letais. O defeito que causa os acidentes de corridas, fatais ou não, é outro: é o defeito da mente humana. Próprio dos pilotos? Próprio do ser humano. Exatamente igual em quem entra num bólido de corrida como em quem exige, e são todos a exigi-lo, a conquista da vitória, da fama, do cargo superior, da riqueza material, para conceder o seu reconhecimento, a sua admiração. Até a idolatria.
Ayrton Senna entrou em um carro, e com ele entrou a mais de 200 em uma curva, do qual acabara de dizer que não sabia as reações, depois das modificações introduzidas na aerodinâmica. Errou? Estava certo? Não sei. Mas sei, sabemos, que fez rigorosamente o que dele era esperado por dezenas de milhares de espectadores, por centenas de milhares de telespectadores, por seus patrocinadores, por todos os que transmitem, anunciam, divulgam ou, por qualquer outra forma, extraem lucros da Fórmula 1. Como do talento de artistas, da criação de autores, de todos os gêneros de fabricação de ídolos a todo custo. Assim é a dita civilização.
Na primeira página do domingo em que Senna morreu, a Folha trazia um trecho de texto assinado por um tal John Casablancas. Dizia: "Vou falar de pessoas que, como eu, como você, querem ser as primeiras. Pessoas que não desistem de suas ambições e querem tirar muito sabor da vida. E que se interessam por gente bonita, bem-sucedida e divertida". Não sei quem é este John como pessoa. Nem me interessa. Porque sei o que é como ser humano: um imbecil. Um retrato individual e admiravelmente fiel da imbecilidade que só reconhece outro ser humano pela fama, pela riqueza, pela ostentação física, pela vitória ultramaterial –mesmo que isso destrua o ser humano. Mesmo que isso tenha feito do planeta Terra uma grande pista de Imola.

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