São Paulo, sexta-feira, 6 de maio de 1994
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TVs diluem a tragédia em frases feitas

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Bastaria uma imagem para perpetuar o enterro: os pilotos conduzindo o caixão. Cena épica do herói morto carregado pelos colegas.
Mas as TVs não souberam usar o símbolo. Abusaram da frase feita e da interjeição. Diluíram a tragédia na banalidade extrema.
A cobertura foi desarticulada. As câmeras só não profanaram o esquife. Invadiram a privacidade dos parentes do morto, na cerimônia que estes queriam privada.
Transformaram o cortejo fúnebre em Carnaval. Fizeram do carro com o corpo um trio elétrico, atrás do qual acorria a multidão excitada para também se eternizar.
As emissoras caíram no ridículo nacionalista. Com a ajuda da massa, associaram o cadáver à imagem cívica. Bandeiras e caras pintadas, tudo parecia festa. Mas não era patriotismo; só idolatria.
A Globo exibiu gosto duvidoso. Perdeu o caixão baixando à sepultura, como fizeram as concorrentes. Preferiu planos gerais.
O narrador William Bonner disse bobagens: "Agora, a dor de Xuxa". "É uma festa grandiosa".
A Bandeirantes fez mais reportagens e trouxe imagens melhores dos pilotos e do caixão. Chico Pinheiro optou pelo olhar antropológico: "É impressionante a manifestação de emoção popular".
A Manchete pôs Márcia Peltier diante do capacete-merchandising sobre o caixão. Ela chorou e se sentiu lírica para comparar estrelas e lágrimas, dor e política.
A equipe do "Aqui Agora" é peixe dentro da água em eventos macabros e se deu bem. Luiz Alfredo encarnou Galvão Bueno na hora errada: "Acelera, Senna! Ele está na grande reta. Cresce a vontade da vitória. Faltam poucos metros para que nós brasileiros saibamos que valemos a pena!".
A TV vendeu Senna como sonho brasileiro realizado. Agora, tendo um morto por produto, sataniza a Fórmula 1 e converte a morte na vitória definitiva.
Ocorreu o funeral do brasileiro orgulhoso de si mesmo. Ontem, o público carregou em triunfo o sonho despedaçado até a cova. Criou outro santo para confortar suas chagas. A TV captou o fato, mas não o entendeu.

Texto Anterior: 10h29 - grande número de bicicletas e motos se incorpora ao cortejo na avenida Rebouças; os ciclistas e motoqueiros estavam de prontidão na esquina da Brasil com Rebouças, esperando o momento de participar das homenagens ao ídolo da F-1;
Próximo Texto: 10h45 - cortejo entra na avenida Morumbi, iniciando a parte final do percurso;
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