São Paulo, sexta-feira, 6 de maio de 1994
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Sobre o Tesouro e o déficit público

JOSÉ CARLOS JACOB DE CARVALHO

Recentemente, após longos períodos de abstinência, a imprensa teve acesso ao resultado de caixa do Tesouro Nacional, que fechou o trimestre com déficit de CR$ 187 bilhões. Após a divulgação de um resultado negativo, é usual questionar-se a meta estabelecida pelo governo de atingir déficit operacional global próximo ao equilíbrio.
Entretanto, as possibilidades de o governo atingir ou não o resultado desejado são de difícil avaliação a partir de simples análise da execução de caixa do Tesouro, tendo em vista que esta tem pouco em comum com o critério de necessidades de financiamento do setor público a partir do qual as metas de déficit são estabelecidas.
As diferenças entre os conceitos começam pela própria abrangência. De fato, as metas de déficit público, além do Tesouro, englobam a Previdência Social, o Banco Central, os Estados e municípios e as empresas estatais (federais, estaduais e municipais).
Desta forma, é já possível começar a avaliar o quanto é difícil concluir sobre a tendência das contas públicas ao basearem-se as análises apenas no resulta da execução financeira do Tesouro.
Como o Tesouro representa apenas uma parcela do Orçamento Geral da União e este, por sua vez, é apenas um pedaço do chamado setor público não-financeiro, objeto do cálculo das necessidades de financiamento, nada obsta a que um possível déficit do Tesouro possa então ser compensado por resultados positivos das restantes esferas de governo.
Por sua vez, mesmo que se restrinja as análises ao Orçamento Geral da União, ainda assim é razoavelmente profundo o abismo que separa as metodologias adotadas para a estimativa dos resultados do Tesouro e das necessidades de financiamento.
As diferenças iniciam-se na forma de apuração já que, por um lado, enquanto nesse último critério as estimativas dos dados realizados são efetuadas no conceito (verdadeiro) de caixa, na execução financeira, por outro lado, a Secretaria do Tesouro Nacional registra, como despesa, não apenas aquilo que foi efetivamente gasto, mas também o que foi liberado para os órgãos e fundos públicos, independentemente deles fazerem uso imediato dos recursos.
Este é, por exemplo, o caso dos recursos do PIS-Pasep, que são arrecadados pelo Tesouro e imediata e integralmente destinados ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Para o Tesouro, a totalidade da liberação para o Fundo é registrada como despesa, mas de fato, para efeitos do critério de necessidades de financiamento, apenas a parcela efetivamente gasta com recursos do FAT deverá ser computada.
Outras diferenças flagrantes entre os conceitos analisados referem-se à forma de estimar as despesas com os juros da dívida pública. Por um lado, no caso do déficit público, as despesas de juros são estimadas em termos líquidos, deduzindo-se as receitas geradas por ativos da União (por exemplo, FAT, reservas internacionais) que, em boa parte, não são considerados na execução financeira do Tesouro.
Por outro lado, no que se refere à dívida mobiliária, o resultado do Tesouro inclui não apenas o que é pago ao público, mas também o que se destina a remunerar a carteira de títulos do Tesouro em poder do Bacen que, como se sabe, detém mais de 80% do valor total do estoque emitido pelo governo.
Além disso, os juros líquidos, para efeito de cálculo do déficit público, são estimados no critério de competência contratual, no caso da dívida externa), enquanto a execução financeira registra-os no critério de caixa.
Por esse motivo, um congelamento de ativos, como o do Plano Collor, melhor significativamente o resultado do Tesouro, mas não o déficit público, porquanto, neste critério, os juros são computados independentemente de terem ou não sido pagos.
Estas diferenças entre a execução financeira do Tesouro e o conceito de necessidades de financiamento podem ser constatadas pela análise dos dados relativos a 1992 e 1993.
A diferença foi especialmente acentuada em 1993, quando se verificou resultado de caixa do Tesouro negativo da ordem dos US$ 10 bilhões, enquanto o OGU chegou inclusive a apresentar um superávit operacional (preliminar) de cerca de US$ 600 milhões.
Já no que se refere a 1994, não existem ainda estimativas oficiais para as necessidades de financiamento, mas uma análise preliminar dos dados do Tesouro e da Previdência Social permite adiantar a possibilidade de o governo central ter fechado o primeiro trimestre com um superávit no chamado conceito operacional (que inclui as despesas líquidas de juros).
Este resultado, a despeito da divulgação de um déficit de caixa, é bastante provável pelo fato das despesas líquidas de juros, no critério de competência, terem sido inferiores às registradas pelo Tesouro no conceito de caixa, e também pelo fato de a Previdência Social dever ainda apresentar um razoável superávit no período.
Se não permite inferir diretamente a direção do déficit da União, e muito menos do setor público como um todo, a execução financeira do Tesouro também motiva, muitas vezes, conclusões precipitadas sobre a pressão do governo sobre a expansão monetária.
De fato, pode ocorrer um resultado de caixa positivo e o Tesouro ser expansionista ou, ao contrário, o resultado ser negativo e o governo contracionista.
Isto é possível porque mesmo que o Tesouro seja, por exemplo, deficitário, se for totalmente financiado com emissão de títulos comprados pelo público (e não pelo Banco Central), necessariamente não provocará expansão monetária, ocorrendo o inverso num mês em que houve superávit, mas resgates líquidos de títulos num montante superior ao resultado obtido, motivaram a utilização das disponibilidades depositadas no Banco Central, provocando então crescimento da base monetária.
Para nos dar informações importantes sobre o Tesouro (e apenas sobre ele) a execução financeira deverá portanto ser analisada com um grau de profundidade distinto daquele com que a imprensa de alguns economistas usualmente nos brindam, especialmetne para evitar que análises superficiais influenciem erroneamente as expectativas dos agentes econômicos.
É evidente que o ajuste fiscal efetuado nos últimos anos pode ser anulado, de um momento para o outro, em virtude de pressões demagógicas e eleitoreiras.
Entretanto, até aqui o governo tem mostrado empenho em segurar as pressões existentes e, se faltam ainda informações relevantes sobre o comportamento das finanças estaduais e municipais, bem como do desempenho das empresas estatais, não vai ser a divulgação do resultado do Tesouro do primeiro trimestre que nos vai permitir concluir que a meta traçada não vai ser alcançada.

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