São Paulo, sexta-feira, 6 de maio de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Razão dissipa-se em "Vício Frenético"

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: Vício Frenético
Produção: EUA, 1991
Direção: Abel Ferrara
Elenco: Harvey Keitel
Onde: a partir de hoje no Cinesesc

Há momentos em que a obra de Abel Ferrara –irregular por excelência– parece tomar um rumo consequente e apontar a crise do individualismo. "Vício Frenético" parece fazer parte, em vários momentos, dessa tendência.
O individualismo é isso: o momento em que o homem se liberta da tutela de Deus, assume a capacidade de raciocinar e discernir como limite de seu destino, torna-se seu próprio centro. Ora, quem é Harvey Keitel, o "mau tenente" da história, senão um ser cuja razão se esvai?
Logo nas primeiras sequências, o tenente de polícia Keitel leva seus filhos à escola. Mal os deixa, aspira uma bela quantidade de cocaína. O carro ainda está parado em frente à escola e pode-se ver um crucifixo, pendurado no espelho retrovisor.
É uma quantidade fantástica de sinais contraditórios. Em alguns segundos, passa-se do pai dedicado ao viciado, do policial ao contraventor, do católico ao transgressor de princípios da Igreja e da sociedade.
O filme seguiria nessa balada, não fosse por um acontecimento capaz de superar os paradoxos em que está envolvido o policial. Numa igreja, uma freira é violentada por um grupo de rapazes de quem ela cuida.
Não se trata apenas de uma profanação, de um sacrilégio. Estamos num território vizinho ao de seu outro filme, recentemente exibido em São Paulo, "Olhos de Serpente", em que todos os papéis se misturam, confundem-se.
Momento mais sublime do filme: quando a freira recusa-se a denunciar seus estrupadores. É como se o corpo da religiosa fosse impermeável ao mundo, a seus imponderáveis, à violência. Como se a existência religiosa rejeitasse a ausência de moral que é a consequência inevitável do individualismo.
Desde que Sigmund Freud criou a psicanálise, na virada do século, sabemos que o homem não é o centro de si mesmo, que seus atos mais profundos são determinados pelo inconsciente (Édipo é o modelo básico, que Freud foi buscar na Grécia antiga, numa tragédia de Sófocles: o homem que mata seu pai, sem saber que é seu pai, e casa com a mãe, sem saber que é sua mãe).
Mas Ferrara passa ao largo da psicanálise. É a razão do século 17, a do "penso, logo sou" que parece perder sentido. Não existe nos atos do policial –praticamente personagem único do filme– nenhum vislumbre dessa relação de causa e efeito.
Os atos de Harvey Keitel parecem não ter acesso à razão, não coordenam causas e efeitos. Existe neles algo de realmente frenético, seja quando caminha para a autodestruição, seja quando procura a remissão.
Por dois ou três motivos, o diretor não chega a se mostrar, neste filme, plenamente à altura da sua proposição. A insistência em mostrar crucifixos é um deles. Sinal de sua filiação católica, o crucifixo é usado de maneira ostensiva demais para que o efeito dramático não degringole em hábito: é como se tudo que importa a Ferrara fosse afirmar seu próprio catolicismo (cheio de contradições).
Essa intromissão do autor na história termina por levá-la a um terreno vago. Nem bem se trata de uma narrativa clássica (em que os acontecimentos interessam independente de serem filmados), nem bem moderna (em que, ao contrário, o fato de ser filmado é que torna assunto e personagens interessantes).
Daí também parecem decorrer outros problemas, como o tom por vezes excessivamente crispado e a liberdade que ganha Harvey Keitel para fazer alguns "solos" abusivos. Servem para provar que se trata de um grande ator (disso sabia-se), mas, sobretudo, cobrem os vazios de idéia do diretor.
Essas limitações não significam que este filme duro, violentíssimo, seja desprezível. Apenas dá a impressão de que Abel Ferrara ainda está para chegar aonde quer e pode chegar.

Texto Anterior: Os chatos também amam no cinema
Próximo Texto: Filme mostra o inferno dos guetos negros
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.