São Paulo, sexta-feira, 6 de maio de 1994
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Benetton subverte padrões publicitários

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Os trabalhos do fotógrafo Oliviero Toscani, feitos para os anúncios da grife Benetton, estão expostos em São Paulo, na galeria da Faap e na passagem subterrânea da Consolação, a propósito de comemorar as eleições na África do Sul.
As fotografias são conhecidíssimas e, como se costuma dizer, "polêmicas". Todos se lembram, provavelmente, da loirinha angelical dando um beijo numa pretinha, cujo cabelo era arranjado de forma a sugerir dois chifres. Ou da imagem chocante do carimbo "HIV Positive", aplicado sobre a pele dos modelos.
Esses anúncios são "polêmicos" um pouco como os shows de Madonna. Fazem de propósito para atrair as críticas do senso comum ou da moral vigente. O padre e a freira se beijando, numa propaganda mais antiga da Benetton, teriam de suscitar as críticas da Igreja, do mesmo modo que acontece quando Madonna faz seus "sacrilégios".
Entrar em "polêmicas" desse tipo é cair na armadilha da própria publicidade. Tudo é feito para atrair críticas previsíveis, como moscas no mel.
Certamente, a Benetton provoca antipatias, às vezes justificadas, outras, nem tanto. Mas, acima dos choques ideológicos (claramente planejados pela empresa), caberia interpretar que tipo de publicidade se inaugura com essas fotos.
A Benetton é uma fábrica de roupas. O interessante é que nenhum de seus outdoors mostra o produto a ser vendido. Caso mais extremo, e espantoso, é o de uma roupa manchada de sangue, aludindo aos conflitos na ex-Iugoslávia. Não se trata de nenhum modelito.
É um gênero de publicidade oposto ao que se conhece habitualmente. Em geral, os anúncios operam segundo estratégias retóricas muito conhecidas. Martíni Bianco traz mulheres bonitas. Os cigarros Hollywood, aventuras.
Em termos literários, pode-se falar em metáfora e metonímia, ou seja, opera-se ou por semelhança ou por contiguidade. Semelhança, ou metáfora, seria mostrar a cerveja gelada no Pólo Sul, entre pinguins. Ou fazer de um banco algo parecido com um time de vôlei ou basquete, dando idéia de coordenação, empenho, vontade de dar alegrias à torcida.
Contiguidade, ou metonímia, seria mostrar uma lata de sardinhas entre iguarias refinadas; príncipes comendo biscoitos de pacotinho; ou, como aparece nos anúncios do Carlton, cigarros ao lado de bens preciosos: pérolas, astrolábios, violinos.
Há uma variante nessa estratégia de contiguidade, que caberia destacar: o recurso à identificação com pesonagens famosos: Pelé, Xuxa, Cebolinha.
É claro que há publicidades bem mais sofisticadas do que os exemplos acima. Mais e mais recorre-se à ironia, joga-se com a própria incredulidade do consumidor. Anúncios "anti-heróicos", como os do garoto da Bom-Bril, são hoje em dia comuns.
Mas o que fazem os cartazes da Benetton? Não há metáfora, contiguidade ou identificação. Ao contrário. Nos casos mais radicais, estamos diante de uma "desidentificação": ninguém quer se identificar com um soropositivo, com um refugiado na Albânia. E imagens como essas são usadas para vender as roupas Benetton.
O escândalo que os anúncios provocam talvez não se deva tanto ao conteúdo das fotos, mas à subversão que impõem na técnica publicitária.
Trata-se de uma "dupla negação". Primeira negação: o produto não aparece no anúncio. Segunda negação: o anúncio mostra, não aquilo com que o produto deveria identificar-se, mas aquilo que repele ou choca o consumidor. Há até uma foto de porcos num depósito de lixo.
A pergunta óbvia é que produto, afinal, se está querendo vender com esses outdoors.
Teoricamente, conforme o lema "United Colors of Benetton", seria o caso de identificar a empresa com mensagens anti-racistas, antipreconceito. Estranhamente, parecem muitas vezes reforçar o preconceito, e não lutar contra ele. E não é plausível a hipótese de que uma pessoa vista roupas da Benetton por militância contra o apartheid ou pela paz na Iugoslávia. O mauricinho de Benetton não é diferente do mauricinho de Lacoste.
No fundo, é como se a marca Benetton se descolasse das roupas fabricadas, pairando por si mesma sobre qualquer realidade que chame a atenção do público. Quando se mostram fotos de tragédias, ou de alegria entre pessoas de raças diferentes, o que importa é a legenda, sempre a mesma, de "United Colors of Benetton". Em vez de ser griffe de roupa, a Benetton vira griffe da foto, griffe do escândalo que a foto pode produzir.
É uma espécie de onipotência, de onipresença da grife. Em qualquer lugar do mundo, a Benetton está presente. Antes de defender o multirracialismo ou o fim do preconceito, a Benetton faz a performance de sua multinacionalidade.
Os anúncios fazem publicidade não do produto, mas da própria marca –e a marca Benetton ganha uma espécie de autonomia, de existência própria e imaterial.
No princípio, as campanhas da Benetton surgiam inspiradas por uma metáfora. As cores das roupas eram identificadas às cores da pele, às diferenças raciais. Assim como há roupas de todas as cores, há raças variadas na vitrine do mundo. Mas logo esse jogo metafórico adquiriu independência; "United Colors of Benetton", o lema, perdeu sentido ou referência própria, valendo apenas pela performance de estar visível nos outdoors.
Já faz tempo que a publicidade vem se transformando numa forma de arte. A venda direta do produto tende a desaparecer, em direção a camadas cada vez mais abstratas, a relações mais longínquas com o objeto anunciado.
A Benetton talvez dê um dos exemplos mais completos dessa espécie perversa de "arte pela arte", mostrando-se como grife de si mesma, como anúncio de sua própria existência, independente do produto.
Essa aparência de autonomia na propaganda talvez esteja ligada a outro fenômeno: o de que outras formas de comunicação estejam sob a suspeita de não serem tão autônomas assim dos mecanismos de marketing. Apenas um exemplo.
Não li o livro de Richard Klein, "Cigarettes are Sublime" (Duke University Press), que faz sucesso nos Estados Unidos. Ao que parece, trata-se de um ensaio inteligente e culto sobre as belezas do tabagismo.
O livro não foi financiado pela indústria de cigarros. Mas poderia ter sido. Não é publicidade de cigarros. Mas a publicidade já se tornou tão refinada, que não seria surpresa se o livro fosse uma peça publicitária. Deve ter sido difícil ao autor dar indícios de seu desinteresse, de sua autonomia frente às conveniências da indústria.
Se a publicidade explícita parece estar com seus dias contados, cedendo lugar a uma espécie de pureza estetizante, de "arte pela arte", talvez seja o caso de pensar de que modo qualquer filme, livro ou ensaio não começa a ficar automaticamente suspeito de merchandising.
Aqui, como em tantas coisas, os limites, as diferenças entre os gêneros vão ficando fluidos. As barreiras entre raças e credos podem continuar. Mas as barreiras entre mercadorias e imagens ideológicas, entre mercadologia e produção cultural, vão se dissolvendo; misturam-se numa imensa "united colors of Benetton."

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