São Paulo, sábado, 7 de maio de 1994
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Quintana era o menino atrás da vidraça

CARLOS HEITOR CONY
COLUNISTA DA FOLHA

Poeta no sentido original, grego, artesão do "poé" e, até certo ponto, indiferente ao "morfé". Daí a frequência da poesia epigramática em sua obra, obra relativamente fragmentada, rua dos cataventos e sapato florido –por sinal, títulos de dois de seus livros.
"Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema" –foi assim que ele definiu sua poesia e, em parte, se definiu. Cultivava, sem dúvida, uma nostalgia existencial que os críticos julgaram uma expressão de passadismo. A sutileza de seu humor, que chegava às vezes à total irrevevência, a visão lírica de aventura humana, o menino atrás da vidraça, o homem que mora dentro dele mesmo: o poeta.
Nada desprezível, também, o lado surrealista de Quintana. Já foi dito que o surrealismo banaliza a imaginação e geralmente oculta ou pretende ocultar o nada. Não foi o caso de Quintana. É dele a melhor definição do que poderíamos chamar de surrealismo: "A mentira é uma verdade que não aconteceu".
Houve um pecado na vida de Quintana: ele foi candidato três vezes à Academia. Talves tenha sido uma forma de humor, essa de bater três vezes a uma porta que não queria se abrir para ele. No mais, sempre acertou na vida e no amor: aos 70 anos, ainda se apaixonava. E viveu um pleonasmo: o amor foi sua única paixão.
A crítica literária que se assanhou com a Semana de 1922 e se deslumbrou com a produção modernista, tem, pelo menos, dois crimes na consciência: o desprezo pela obra de Lima Barreto e o menosprezo (inicial) pela obra de Mário de Miranda Quintana, que morreu anteontem em Porto Alegre, aos 87 anos.
Num caso como no outro, a crítica adotou a perspectiva da anedota: era modernista quem vivia modernisticamente, como Oswald de Andrade, Villa Lobos, Mário de Andrade. Casos isolados como o de Mário Quintana, exilado na província e na boêmia, foram neglicenciados por críticos e historiadores que não cavaram fundo na essência do "moderno".
Quintana foi descoberto tardiamente, coisa de quinze, vinte anos atrás. Até então, era louvado apenas pelas excelentes traduções que marcaram uma das melhores safras editoriais do Brasil: a da Livraria Globo, de Porto Alegre. Além de Virginia Woolf e Charles Morgan (quem ainda se lembra de "A Viagem"?), Quintana traduziu quatro dos sete romances que formam a obra-prima de Proust.
Foi o público, notadamente os universitários, sacudidos em parte pela mudança do eixo crítico que fez valorizar Caetano e Chico, foram os jovens que descobriram Quintana, já ancião mas ainda poeta.

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