São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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Outros heróis

JANIO DE FREITAS

O Brasil é um país de heróis. Não parece, mas é. E se parece que dizer isto é contestar algum herói de recente sagração, parece mas não é. Talvez nenhum outro país tenha tanto lugar para heróis, não é preciso disputar espaço. Nem contrapor conceitos de heroísmo.
O herói é um modo de ser visto. Não é uma verdade absoluta, mas relativa. O herói de um pode não ser o de outro. O jornalista Luiz Paulo Horta já expôs o que chamou de seus "heróis anônimos". São o pai que luta para educar os filhos, o professor que quer ensinar a despeito do mau salário, o pianista Nelson Freire, a teatróloga Maria Clara Machado e o jardinista Burle Marx. Admiráveis embora, os três citados mostram o quanto é pessoal o conceito de heroísmo.
Mas não é a diversidade do conceito que faz do Brasil um país de heróis. É, creio, porque temos mesmo multidões de heróis. Cada trem que sai da periferia de uma grande cidade para o seu centro, ainda mal nascido o dia, ou que do centro retorna à periferia quando já não há o que aproveitar do dia, vai levando uma quantidade de heróis como só as grandes batalhas tiveram. E foram efêmeras, duraram horas. Às multidões destes trens não lhes bastam que sejam diárias por todo o ano, em todos os anos. São duas vezes diárias.
Só o fato de suportarem por toda a vida o inferno destas condições comparáveis apenas aos trens nazistas dos campos de concentração, só isso já revela o quanto são heróicas essas multidões. Ver a estação terminal de um desses trens, nas horas de avalanche, é uma das muitas experiências imprescindíveis, ao alcance fácil de qualquer um e, no entanto, jamais feitas. Vá um dia. É certo que terá ganhos inimaginados, em muitos sentidos.
Mas o que agiganta o heroísmo é o que faz as multidões suportarem aquela degradação: elas o fazem para ir trabalhar, em trabalhos que não lhes dão mais do que outras degradações, e retornando deles apenas para a eles retornar no dia seguinte. É quase inacreditável. Não porque a subjugação seja aceita passivamente, sem uma grande rebelião. Haveria a solução mais fácil da marginalidade, em qualquer das suas muitas formas.
Não há heroísmo, supõe o meu conceito de herói, sem um sentido ético –na inspiração e na finalidade do ato. Se é mesmo assim, as multidões degradadas para trabalhar honestamente, em troca de um nada, ou apenas pelo sentimento de viver honestamente, estas multidões são feitas de heróis verdadeiros.
Nelas, um tipo é particularmente admirável. São os garis. Ser apanhador e manipulador de lixo para viver miserável mas honestamente, sem outra promessa de vida que não esta mesma, revela uma honradez pessoal muito mais do que invejável. São grandes heróis da honestidade. Sem eles, nós outros é que chafurdaríamos no inferno.
O Brasil será melhor quando tiver menos heróis verdadeiros.

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