São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Jogo do bicho: exercício regular de direito do Código Penal

PEDRO FALABELLA TAVARES DE LIMA

1) Em terra de grandes desigualdades sociais, pode-se apostar: a Justiça Criminal opera precariamente. Sem Justiça Criminal efetiva, para todos, nunca haverá verdadeiro progresso social ou democracia de fato.
Pouco adianta, hoje, que dirigentes da Magistratura e do Ministério Público procurem destacar os méritos da Justiça Civil; o que falta, ao Brasil, é Justiça Penal. No Crime, em tese, é onde a soberania do Estado mais pode e deve avançar sobre a liberdade do cidadão.
Uma Justiça pública sadia assenta-se sobre a ação independente de juízes e promotores de Justiça, o que deve ir além de formalismos possíveis e meias-verdades.
2) A Súmula 51, do Superior Tribunal de Justiça, repete apenas o que a própria lei já diz: que o cambista (vendedor de apostas) pode ser processado, mesmo que não se identifique o banqueiro para quem trabalha.
Há mais de 50 anos que só cidadãos humildes (cambistas) são presos em flagrante por sua participação na citada loteria.
Essa conhecidíssima e injusta realidade, que consiste em prender apenas cidadãos pobres, ainda que sempre em nome do combate à ação dos poderosos, foi recentemente chamada de "hipócrita e cínica" pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho; e, em 1944, foi chamada pelo jurista José Duarte, em sua importante obra de comentários à lei das Contravenções Penais, de "a mais bradante injustiça" conhecida.
Ocorre, com a contravenção do jogo do bicho, um caso raro, senão único: a conduta proibida pela lei é, em si, plenamente aceita pela sociedade. Aplica-se, à prática do jogo do bicho, a causa de exclusão de ilicitude do exercício regular de direito, do Artigo 23 do Código Penal.
Conceitualmente: se outros ramos do direito (extrapenais) permitem e legitimam o jogo do bicho, a Justiça Criminal não o pode perseguir. Isto é da lei e é da lógica.
Ora, se a Justiça do Trabalho, habitualmente, em inúmeros Acórdãos do Superior Tribunal do Trabalho e de Tribunais Regionais do Trabalho, reconhece como válida a relação empregatícia havida entre banqueiro e cambista, é porque o jogo do bicho não é ilícito. Só as atividades lícitas podem gerar obrigações dedutíveis em juízo. Isto é norma do Código Civil, desde 1916. Os ministros do Superior Tribunal de Justiça, e ainda promotores e juízes que se valem da Súmula 51 citada, todos não sabem disso?
Portanto: dada a definição de exercício regular de direito, pode-se afirmar que o jogo do bicho é conforme o direito (e não contrário ao mesmo).
Quando Executivo e Legislativo se unem para perpetuar o absurdo, juízes e promotores não precisam disso participar.
Por que, como regra, não se combatem, na organização do jogo do bicho, apenas os delitos verdadeiros e graves, cuja repressão efetivamente interessa à sociedade? É preciso não esquecer: a sociedade condena essa atividade lotérica somente quando ligada a delitos como o homicídio, o tráfico de drogas, a corrupção, a formação de quadrilha etc.
Prender só pobres cambistas, em flagrantes que têm feição de "preparados", sempre em nome do combate ao crime organizado, tudo gera fundadas suspeitas de que há nisso interesses de governantes corruptos; suspeitas de que "criam-se as dificuldades, para se venderem as facilidades", como diz o adágio popular.

Texto Anterior: Senna deu força ao conceito de imagem
Próximo Texto: Brasil usa reparação de dano
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.