São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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Hora e vez da Constituinte exclusiva - 2

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No artigo do último domingo, argumentei que idealizar o que nos falta é uma tendência natural do homem. A garota de Ipanema é, por definição, a "que vem e que passa", não a que fica.
Foi assim com a democracia sonhada nas entranhas do regime militar. O sonho "ex ante" revelou-se um pesadelo "ex post". É deste pesadelo que estamos todos tentando acordar.
A raiz do problema, é claro, não está na democracia representativa enquanto sistema político, mas nas distorções que marcaram a nossa transição democrática e o processo constitucional em particular.
A transição política no Brasil precedeu a econômica e padeceu de sérios males de origem. Entre as causas básicas do mal funcionamento da nossa democracia, os equívocos, vícios e inconsistências da Constituição de 1988 merecem lugar de destaque.
O diagnóstico de Skidmore –ainda que exagerando um pouco a situação– parece-me conter uma grande dose de verdade.
Sobre o detalhismo grotesco da Carta de 88 não é preciso insistir. Basta lembrar que, passados cinco anos e meio de sua promulgação, apenas pouco mais de 100 dos cerca de 350 dispositivos constitucionais que exigem legislação complementar foram regulamentados.
O que temos, em termos de Constituição, não é apenas um cortiço gótico de anseios desencontrados. É um cortiço inacabado e inacabável. Outro exemplo do que diz a canção: "Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína".
Como sair da encrenca constitucional em que nos metemos? Como reparar as aberrações –consumadas e inacabadas– do Congresso Constituinte de 88 e reverter o fiasco do Congresso Revisor de 94?
Antes de mais nada, convém identificar com clareza: 1) as falhas e lições do processo constitucional recente; e 2) as medidas e cautelas necessárias para evitar que os mesmos erros se repitam no futuro.
O fracasso da revisão era previsível. Ele foi previsto nesta coluna, antes mesmo da abertura da Reconstituinte.
"Não se trata de questionar a legitimidade do atual Congresso... Fosse qual fosse a composição política do Congresso e fosse qual fosse a nossa opinião sobre o conteúdo desejável da revisão, o fato é que não é correto fazer uma reforma constitucional dentro de um ano pesadamente eleitoral, com um Congresso em final de mandato e com parlamentares naturalmente preocupados em fazer o possível para agradar governadores e presidenciáveis, financiar suas campanhas e garantir sua reeleição."
No fundo, o fiasco da revisão tem muito a ver com o desatino constitucional de 88. Ambos procedem da mesma causa básica –o desrespeito ao princípio de que o processo constitucional não se confunde com a pequena política e deve ser protegido ao máximo do processo normal de disputa partidária-eleitoral.
Não há nada mais nocivo, do ponto de vista da qualidade do processo de criação e reforma constitucional, do que a sua sujeição a motivações menores e imediatista, ligadas a interesses corporativos, setoriais e eleitorais.
A democracia é uma regra de convivência civilizada no exercício da política. O autoritarismo tenta arbitrar de cima e sufocar o conflito, a disputa e a competição pelo poder.
O regime democrático, ao contrário, existe para que o conflito natural de interesses e opiniões entre os indivíduos e grupos sociais possa ser devidamente explicitado, negociado, assimilado e eventualmente resolvido, sem descambar para a violência, ruptura ou anarquia.
Mas para que a democracia possa funcionar a contento e consolidar-se, ela precisa de um arcabouço de normas constitucionais que estabeleçam os parâmetros dentro dos quais o conflito natural de interesses pode ocorrer livremente.
O crime é permitir que este arcabouço se torne ele próprio objeto de disputa no varejo da pequena política. Fazer isso é subordinar o permanente da ordem democrática ao transitório do jogo de interesses –é fazer da democracia um gigantesco mal-entendido.
A criação das regras do jogo democrático não se confunde com a disputa normal do jogo democrático. As regras do jogo não podem ficar à mercê da vontade e das ambições dos jogadores.
A principal falha do nosso processo constitucional foi ter permitido que a elaboração da lei maior se transformasse em butim de toda sorte de interesses menores –coalisões oportunistas, paixões partidárias, imediatismo eleitoral, pleitos corporativos, privados e até pessoais.
Tais interesses são naturais e perfeitamente legítimos no jogo democrático, mas geram aberrações quando dominam a própria criação das regras do jogo. Deu no que deu. O desfecho emblemático de tudo isso foi o quinto ano para Sarney.
A proposta da assembléia revisora exclusiva é o caminho mais sensato e civilizado para recolocar a democracia brasileira nos trilhos. Mas, para que ela seja na prática o que dela se espera –e não mais um capítulo do nosso mudancismo legal–, é preciso que três exigências básicas sejam atendidas.
1) Participação aberta a qualquer cidadão que não ocupe cargo eletivo e cláusula de impedimento –quem participar da assembléia fica impedido de se candidatar a cargos públicos por um prazo de cinco anos.
2) Representação estritamente proporcional ao número de eleitores: 150 constituintes eleitos com base no princípio do "um cidadão, um voto".
3) Máxima separação do processo eleitoral em curso. A eleição da assembléia jamais poderia ocorrer ainda este ano, à sombra de acirrada disputa sucessória; o momento adequado seria o segundo semestre de 1995.
A Constituinte exclusiva é a bandeira de todos os que não se conformam com os descaminhos da democracia brasileira.
O conselho de James Madison, principal responsável pela Constituição norte-americana de 1787, já é parte de nossa experiência vivida: "Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se anjos governassem os homens, nenhum controle externo ou interno sobre o governo seria necessário."

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