São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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Senna era o personagem de videogame perfeito

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA REVISTA DA FOLHA

Senna era o personagemde videogame perfeito
Morreu um game. Um personagem virtual de um autorama eletrônico. Não era um game qualquer: respondia como poucos ao desejo projetado de seus usuários viciados. Batia recordes, superava limites, andava na frente. Durante anos, gente de todo o mundo fascinou-se com ele. Aprendeu a vê-lo nas telas de televisão fazendo o improvável.
O herói do game era uma fonte de alegria. Vencia sempre. Quando não vencia é porque alguma coisa havia quebrado. Peças de brinquedos, mesmo os eletrônicos, às vezes quebram. É natural.
O que não é natural é que morram. Um mecanismo tão perfeito, tão espantosamente eficiente, tão adaptado, mas também tão superior à configuração do jogo –como pode morrer?
A primeira dolorosa dificuldade em aceitar a morte de Senna foi admitir que o herói tivesse sangue. Aquela terrível mancha sobre o cimento do autódromo não era gerada pelo software. Aquilo não era mais game, não era mais um efeito nem um defeito. Aquilo era demasiadamente humano.
Depois o anúncio, os detalhes do traumatismo, as declarações consternadas. E as imagens de Senna logo postas no ar –sorrindo, vencendo– começavam estranhamente a se transformar em arquivo. Uma difícil operação mental "on line" precisava codificar o rosto de Senna como o rosto de alguém que morrera.
A percepção da morte, a passagem do mundo cozido da virtualidade eletrônica para o mundo cru da natureza e a reorganização simbólica desta experiência traumática: os brasileiros passaram por um Grand Prix emocional extremamente duro e complexo.
E reagiram solidariamente a este sentimento comum. Foi uma elaboração coletiva da perda. A perda do brinquedo transformou-se na perda da pessoa e, claro, ainda mais: na perda de um dos nossos, na perda de um dos nossos que era melhor do que os outros, na perda de um dos nossos que não nos rejeitava.
Um homem rico, vitorioso, branco, paulista que não nos rejeitava! Ao contrário, insistia em mostrar a quem estivesse vendo –e não são poucos os que acompanham a F-1 mundo afora– sua filiação: era um brasileiro, fora gerado por um país, era fruto de um lugar, de uma gente, de uma língua, de uma cultura, por menos nobres que possam parecer.
Se Alain Prost é francês, se Mansell é inglês, se Maradona é argentino, se Magic Johnson é americano, Senna é brasileiro.
O povo brasileiro, que ao contrário de seus intelectuais não se envergonha de ser brasileiro, sabe muito bem disso. E demonstrou seu orgulho no momento possível –num país que oferece uma enorme variedade de motivos de vergonha. A manifestação nacional em torno de Senna é, além de legítima e bela, uma consequência previsível da perda de um ídolo, de um representante da raça que a simbolizou como ela sempre quis: com determinação e talento.
O que diferenciava Senna dos outros campeões era exatamente este algo a mais que fascina os brasileiros: esta capacidade de resolver situações de forma imprevisível, este superávit de talento.
Senna, lembre-se, sempre esteve longe de ser o maior amigo dos treinos. Preferia a praia de Angra para chegar na Europa com tudo pronto. Acreditava –e todos nós também– que resolveria o problema na hora, porque fazia melhor.
O que, realmente, sempre fez.

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