São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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O vício que o cinema tornou glamouroso

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Erramos: 10/05/94

O título correto do filme citado nesta matéria é "A Estranha Passageira" e não "A Estréia Passgeira".

O vício que o cinema tornou glamouroso
"Quando eu falei com o doutor sobre a minha fraqueza por cigarros, ele sugeriu que iniciássemos minha análise recapitulando a evolução do meu vício desde o princípio".
Assim começa um dos mais estimados romances deste século, "A Consciência de Zeno", do italiano Italo Svevo. Nele, a patológica relação do homem com o ato de fumar é submetida a uma terapia de inspiração freudiana. Só que em vez de deitar num divã, o inveterado fumante é instado a historiar o seu tabagismo por escrito.
Zeno aceita o conselho do analista e parte em busca do tempo perdido à maneira de Proust. Sua "madeleine" é um velho maço de cigarros austríacos, cuja marca já não existia mais durante a Primira Guerra Mundial. Zeno quer parar de fumar porque desconfia ser o tabaco a raiz de todas as suas mazelas, físicas e psíquicas.
Que eu saiba, sua luta, de resto inglória, contra os efeitos perversos do alcatrão e da nicotina não induziu nenhum leitor a deixar de fumar. Teria sido diferente no século passado? Talvez sim. Em 1923, quando o romance de Svevo foi publicado, o poder de influência da literatura nos hábitos das pessoas já não era páreo para a força persuasiva do cinema, onde até recentemente fumar sempre foi tratado como um hábito chique, sedutor e sociabilizante.
Não foi só a beijar que os filmes nos ensinaram. Todos os prazeres orais encontraram na tela a sua mais eficaz e subliminar fonte de estímulo.
Uma baforada em letra de forma, mesmo com a assinatura de um autor envolvente, não vale um centavo perto de sua representação com os lábios, os dedos e o olhar mormacento de uma estrela do cinema. Mesmo (ou sobretudo) aqueles que acreditam ter sido levados ao vício por indutores mais seletos –como Albert Camus, Juliette Greco e outras "locomotivas" de unhas amareladas que o existencialismo celebrizou na margem esquerda do Sena, Sartre inclusive– precisam se convencer de que, sem a glamourização do cigarro plasmada por Hollywood, eles já estariam sendo segregados há muito mais tempo.
Símbolo de virilidade para os rapazes (até por suas implicações fálicas), para as moças, por um cigarro na boca é a maneira mais fácil –e socialmente aceita– de aplacar em público a inveja do pênis. E, por tabela, de se sentirem mais adultas, seguras, independentes. Quando não dominadoras e fatais. O que seria da mística de Bette Davis, Marlene Dietrich e Rita Hayworth sem a fumaça de uma bagana?
E mais: o que seria do filme noir sem as tensas e nervosas tragadas dos seus marginais e as lânguidas inalações de suas vamps? O que seria de Groucho Marx, de W. C. Fields sem os seus charutos? Teria "A Estréia Passageira" (Now Voyager) a fama que tem sem aquela cena em que Paul Henreid acende dois cigarros na boca e oferece um deles a Bette Davis?
Se não fumasse, Humphrey Bogart dificilmente teria se transformado no herói existencial número um dos anos 40. Consequentemente, teria sido outro o ícone idolatrado por Jean-Pierre Belmondo em "Acossado", o elo mais notável de uma corrente que chega até os nossos dias com Mickey Rourke, Tom Waits e Matthew Modine, para citar apenas três dos raros atores com menos de 50 anos que não se renderam à nova ordem de proibido fumar que até nas telas a cruzada antitabagista está conseguindo impor.
Embora dissesse, com toda razão, que o fumo deforma o paladar, o sentido básico de todos os gourmets, o comilão Alfred Hitchcock era absolutamente fascinado por cigarros, charutos, isqueiros e outros acessórios relacionados com o vício que matou, entre outros heróis de aço, John Wayne e Steve McQueen. Faz sentido, pois os filmes de Hitchcock quase sempre eram noirs, ainda que pouco esfumaçados. Seus fumantes lhe forneciam tomadas visualmente insólitas, como a de Jessie Royce Landis apagando um cigarro na gema de um ovo frito em "Ladrão de Casaca", munição para suspense (o isqueiro de Farley Granger em "Pacto Sinistro") e combustível para cenas literalmente explosivas, como a da bomba de gasolina em "Os Pássaros".
A certa altura de sua vida, John Wayne decidiu parar de fumar. Como Zeno, antes acendeu o seu último cigarro. E depois, outro. E mais outro. E assim foi até morrer de câncer pulmonar. Duas vezes: no filme "O Último Pistoleiro", por coincidência seu canto de cisne, em 1976, e de verdade, três anos mais tarde.
Sim, fumar faz mal à saúde e dessa fatalidade nem o indestrutível Wayne escapou. Aliás, 30 anos antes de bater as botas, ele acendeu um cigarro que se revelou fatidico, em "Iwo Jima, o Portal da Glória". Terminada a batalha, Wayne relaxava e dizia para um de seus comandados: "Nunca me senti tão bem na vida". Em seguida, puxava um cigarro. Antes que pudesse acendê-lo, uma bala inimiga o atingia mortalmente. Premonição mais sinistra do que esta só a que vitimou Linda Darnell, queimada viva duas vezes na tela e uma na vida real. Onde há cigarro, há fogo. Por isso, aliás, é proibido fumar dentro dos cinemas.

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