São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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As confissões de um fumante inveterado

JOHN LEONARD
DO "THE NATION"

Com um projeto de lei proibindo que se fume cigarros em qualquer lugar nos Estados Unidos exceto no meu banheiro, o secretário do Trabalho, Robert Reich, e seu bando de gnomos alegres da Administração de Saúde e Segurança Ocupacional querem purgar os locais de trabalho, por decreto, de qualquer vestígio da erva maligna.
A isto se soma uma proposta de multiplicar por seis o imposto federal sobre cada maço de pregos de caixão –vulgo cigarros–, de US$ 0,24 para US$ 1,49, para financiar uma reforma do sistema de saúde, punindo os pecaminosos.
Sem falar no deputado californiano Henry Waxman, que sonha em voz alta com a criminalização da nicotina, enquanto ouve David Kessler, comissário de Alimentos e Medicamentos, que não consegue decidir se as companhias de cigarros colocam um xarope viciante em seu produto ou se apenas possuem a tecnologia patenteada para fazê-lo, se o quiserem.
E a horrorosa que sentou do meu lado um dia destes no setor de fumantes de um café, vestindo a pele de um marsupial morto, com cheiro de entranhas de cachalote, e reclamou do cigarro que eu já apagara, porque fui acossado a ponto de me sentir um pária, numa República de moralistas, reclamões profissionais, histéricos vegetarianos pós-terapêuticos e praticantes de cooper nazistóides.
Este artigo não se destina aos Mercadores da Morte. Eles não o leriam, estão ocupados impedindo que venham a público mais estudos sobre o comportamento de roedores viciados em nicotina.
Este artigo se dirige aos próprios roedores viciados em nicotina. Para que se sintam melhor: segundo o livro de Richard Rudgley, a ser lançado em breve, "Essential Substances: A Cultural History of Intoxicants in Society" (Substâncias Essenciais: uma história cultura dos intoxicantes na Sociedade, Kodansha), os xamãs siberianos da Idade da Pedra já se deliciavam com cogumelos.
As pinturas rupestres dos bosquímanos San, do Kalahari, ou dos Coso Shoshones da Grande Bacia californiana não teriam a aparência que têm se eles não tivessem utilizado um alucinógeno. Sabemos, pelas cavernas do sul da Espanha e também pela arte das tumbas e dos megalitos bretões da França neolítica, que as papoulas já se faziam presentes.
O "mang" consumido para se obter as visões do clássico da literatura zoroástrica do século 3º, "O Livro de Arda Wiraz", provavelmente continha substâncias químicas encontradas no cipó amazônico "Banisteriopsis" ("yajé"), usado pelos índios para enxergar onças.
Para se iniciarem nos segredos da identidade masculina, os Bimin-Kuskusmin, da Nova Guiné, utilizam primeiro gengibre, depois tabaco e finalmente cogumelos.
Os índios tucanos fervem casca de árvore para obterem a "ayahuasca". No Peru, em Equador e na Bolívia se masca coca; no Iêmen, Etiópia, Somália e Quênia se masca "khat"; na África Ocidental, nozes de cola.
E continuo a enfiar folhas em brasa em meu orifício alimentar. Kurt Vonnegut e Vaclav Havel fumam. Também fumavam Pablo Picasso, Mary McCarthy e Franklin Roosevelt.
Um dos prazeres de ir a Suécia para assistir às entregas dos prêmios Nobel em dezembro passado foi poder acender um cigarrinho na companhia de Toni Morrison, Fran Leibowitz e Sonny Mehta.
Em Estocolmo há cinzeiros nos elevadores! Aqui temos de nos esconder. E pelo opróbrio de que somos alvos, até parece que somos gays, judeus ou mesmo Violência na TV. Alguns de nós provavelmente somos. Mas o que aconteceu com Viva e Deixe Tossir?
Sempre soubemos que o tabaco faz mal. Para os iroqueses de Nova York ou os maias de Yucatán, para quem a folhinha era deus, talvez o câncer do pulmão ou o enfisema fossem o troco dado à Europa por tantos presentinhos, como a varíola e a sífilis.
Agora ouçam esta. Hitler, que odiava cigarro, odiava especialmente ver mulheres fumando.
Uma pesquisa patrocinada pela Comunidade Européia revela que as mulheres apresentam tendência maior a fumar em países como a Holanda, onde elas foram mais liberadas dos lugares e papéis tradicionais, do que em países como, digamos, Portugal.
"Uma mulher que fuma em público", diz Richard Klein, autor de "Cigarettes are Sublime" (Duke University), "ofende àqueles que acham que ela deveria andar de véu". Isto me faz pensar que a histeria antifumo é misógina.
E "a performance discursiva do fumar se transformou em obscenidade, e a obscenidade em questão de saúde pública". Isto me faz pensar que a proibição do fumo é censura! E finalmente há a "ética popular da generosidade democrática associada ao tabaco em geral, e aos cigarros em especial". O cigarro é uma coisa que um mendigo pode "filar" de um aristocrata.
"Se Prometeu houvesse roubado o fogo do Céu para acender seu cigarro", escreveu Madame de Giradin em 1844 ao Visconde de Launay, "eles o teriam permitido". Isto me leva a pensar que fumar é uma forma de socialismo.
Não importa que não me deixem mais fumar nem nas reuniões dos Alcoólatras Anônimos que frequento zelosamente há oito anos. Hoje em dia, quando um mendigo nos pede um fósforo, nós o queimamos vivo. Não vivemos mais numa sociedade civil. E pergunto: querer viver para sempre não é uma arrogância?

Tradução de Clara Allain

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