São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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As profecias do padre Vieira

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em 1665 o padre Antonio Vieira, às voltas com a Inquisição, escrevia simultaneamente duas obras: a "Apologia das Coisas Profetizadas" –sua resposta às acusações que lhe fazia o Santo Ofício– e a "História do Futuro", uma espécie de amplo compêndio de todas as profecias em que acreditava.
Ambos os textos –que, além do mais, apresentavam vários temas e argumentos em comum– ficaram incompletos. Vieira teve de entregá-los como estavam aos inquisidores, que, depois de usá-los como lhes interessava no processo contra o autor, guardaram-nos sem nenhuma ordem e nenhuma preocupação com os pesquisadores do futuro.
Nos últimos séculos, estes pesquisadores sentiram-se, compreensivelmente, intimidados diante da confusão de manuscritos e rabiscos contidos em duas pastas com cerca de 800 fólios cada –o "processo de Vieira".
Ao se deparar com esse precioso emaranhado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, a brasileira Adma Fadul Muhana, 33, doutoranda em literatura brasileira na USP, percebeu nexos entre os fragmentos, laços de continuidade que permitiam recompor e tornar inteligível boa parte da "História do Futuro" (que até então tivera apenas dois capítulos publicados) e da "Apologia".
O resultado de seu árduo e longo trabalho (dois anos de pesquisa, um ano de produção) é o livro "Apologia das Coisas Profetizadas", publicado em Portugal pela editora Cotovia e agora acessível ao leitor brasileiro através da importadora Ebradil (leia ficha ao lado).
Em sua longa e minuciosa introdução ao livro, Adma Muhana procura contextualizar as duas obras e distinguir, quando possível, o que faz parte de uma e de outra.
Grosso modo, pode-se dizer que a "História do Futuro" desenvolve com maior fôlego e linguagem mais literária os temas e argumentos da "Apologia" –texto endereçado aos inquisidores com fins específicos de defesa.
Na "Apologia", Vieira procura mostrar, basicamente, a verdade das profecias feitas em meados do século 16, em forma de "trovas", por um certo Gonçalo Anes Bandarra, sapateiro de Trancoso.
Depois de defender exaustivamente, com base numa imensa erudição bíblica e teológica, a tese de que Bandarra foi verdadeiramente um profeta, Vieira entra no mérito de suas previsões, interpretando-as e adaptando-as à sua própria época.
Entre as profecias de Bandarra, segundo a interpretação de Vieira, estão a destruição do Império Otomano, a conversão de toda a humanidade ao cristianismo e a instauração do Quinto Império, universal, sob a égide de Portugal. (Os quatro primeiros impérios tinham florescido na Síria, na Pérsia, na Macedônia e em Roma).
As previsões de Bandarra, segundo Adma Muhana, não tiveram grande projeção até o desaparecimento de d. Sebastião , rei de Portugal, na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, em 1578. No final do século16, d, João de Castro empreendeu a primeira edição das "Trovas" de Bandarra. Em sua interpretação, elas profetizavam a ressurreição de d. Sebastião. Escrevendo quase um século depois, Vieira fazia uma nova interpretação : quem iria ressuscitar seria d. João 4º , em cujo reinado ele havia sido pregador da Corte. Para sustentar suas ousadas interpretações proféticas, Vieira recorre frequentemente a exemplos bíblicos. Se são registradas quase cem ressurreições e incontáveis profecias "verdadeiras" no Antigo e no Novo Testamento, por que a ressurreição de d. João 4º, e as profecias de Bandarra haveriam de ser descartadas como quimeras absurdas e ofensivas à Igreja Entre os trechos inéditos de Vieira que vêm à luz estão os que tratam do paradeiro das Dez Tribos de Israel, desaparecidas por volta do século 8 a.C. , segundo o Antigo Testamento. Depois de expor as diversas teorias sobre as Dez Tribos - teriam dado origem aos índios da América Seriam os tártaros - Vieira passa a refutá-las minuciosamente (leia trecho ao lado). Sua tese, de todo modo, é de que essas tribos reapareceriam e se converteriam à religião cristã , na aurora do Quinto Império. Os judeus conhecidos, espalhados pelo mundo, também "reconheceriam seu erro" e se converteriam. Outro trecho inédito de grande interesse é aquele em que Vieira discorre longamente sobre as teses dos chamados milenários - heresia de que ele chegou a ser injustamente acusado. Em resumo, os milenários diziam que haveria duas ressurreições (a primeira só para os homens bons, a segunda universal). Entre a primeira e a segunda Cristo retornaria à Terra e reinaria com os bons ressucitados. Nesse reino, que duraria mil anos, os homens viveriam "em perpétuas felicidades e delícias não só espirituais , mas corporais". Depois deste livro, Adma Muhana trabalho com a transcrição dos interrogatórios a que Vieira foi submetido pelos inquisidores. O resultado do trabalho está no livro "O Processo de Vieira na Inquisição", que ela está tentando publicar no Brasil. A pesquisadora faz parte de uma equipe luso-brasileira que prepara uma edição crítica da monumental "Clavis Prophetarum", obra profética de Vieira escrita em latim e prevista para publicação (pela Edusp) em 1997, ano do quarto centenário da morte do autor.

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