São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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A melhor parte

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Liturgia de todas as manhãs: quando me vê entrar no banho, Mila vai para o canto dela e desaba. Sabe que vou sair, só voltarei à noite. Fecha os olhos e espera. É a única pessoa que realmente me espera. Digo "pessoa" embora Mila seja mais do que isso.
Quando volto, ela adivinha a aproximação do meu carro. Vai buscar a filha, Títi, avisando-a que estou para chegar. Títi se distrai com os passarinhos da Lagoa, quando escurece ela fica olhando os faróis dos carros, até hoje não entendeu direito por que os carros têm luz branca na frente e luz vermelha atrás. Mistérios da vida, dos cães e dos carros.
Sábados e domingos a liturgia é de festa. Mila sabe que é sábado porque me vê de calção para ir à praia e vai buscar minha sandália. Há doze anos que sempre espera por esse momento: toma sorvete, come uma fatia de melancia e mergulha nas ondas da Praia do Diabo –a única liberada para tudo– não fosse ela do Diabo. Depois do almoço, ela tem lugar na rede, ao meu lado. Sim, somos felizes por que estamos juntos.
Quando viajo –quem toma conta de Mila diz que ela encara o tempo como se fosse um dia: distribui cientificamente as horas –manhã, tarde e noite– e espera. Sabe que, ao cair a noite, a porta se abrirá e o dono –eu– chegará. Pior para mim: tudo que sou cabe nesse "dono". O resto é o resto –acho que foi Hamlet quem disse: o resto é silêncio. É por aí mesmo.
Do outro lado da corda, estou eu, esse "dono" que não é dono de nada, nem de si mesmo, dono pior que o dano de tudo. Bem, tenho Mila, sei que as portas do inferno não prevalecerão contra mim: ela me espera. À minha maneira, também desabo num canto, vou à luta, fecho os olhos e aguardo o momento da chegada. Mila tem um jeito doce de olhar com seus olhos cor de mel, combinam com seu pelo dourado e farto. E sempre é bom chegar: deixo com ela a melhor parte de um dono que nunca teve uma parte melhor.

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