São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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A Constituição-saúva

ROBERTO CAMPOS

"Nada há de errado com o Congresso em Washington, exceto o pessoal que está lá"
(Booth Tarkington, sobre o Congresso americano)

O melancólico caminho da revisão constitucional afinal começa a assustar a opinião política do país. Um dever sério e nobre estaria, como diz o povo, acabando em pizza. Várias propostas de convocação de uma assembléia revisora exclusiva já foram apresentadas dentro e fora do Congresso por personalidades respeitáveis como o senador José Sarney, o deputado Delfim Netto, o economista Luís Nassif e o jurista Ives Gandra Martins.
Quanto mais penso nisso, entretanto, mais me parece um caso de intenções postas a perder por ilusões. A idéia de uma Constituinte expressamente eleita para o fim exclusivo de votar uma Constituição parece, à primeira vista, uma solução atraente. Um grupo de homens ilibados, de alto nível intelectual, animados do mais acendrado patriotismo –de que mais se precisa para formar uma augusta assembléia?
Mas que pessoa no seu juízo normal se candidataria a uma eleição, com todos os custos e desgaste que isso implica, apenas para ficar seis meses em ação e, depois da dissolução da assembléia, voltar para a sua vida de antes? E que responsabilidade poderia sentir essa gente sabendo que, mal terminado o seu trabalho, este poderia ser modificado pelo Congresso propriamente dito?
O dinheiro para as eleições teria de vir de alguma parte. Seria uma campanha tanto mais difícil quanto inevitavelmente se sobreporia, dentro de uma faixa comum de tempo, às eleições regulares –no caso, as mais complexas levadas a cabo no país.
E em quê uma eleição –semelhante, na mecânica, a todas as outras– haveria de distinguir os pró-homens exemplares dos xiitas, militantes esquerdistas e dos aventureiros e lobistas, que provavelmente seriam bem mais atraídos por essa única oportunidade de mexer nas regras do jogo do que pelo penoso trabalho do cotidiano parlamentar?
Compreendo a impaciência de muitos diante do péssimo desempenho do Legislativo na revisão constitucional –e o receio de alguns diante das possíveis reações da opinião pública no pleito que se aproxima. A atual Constituição já foi experimentada cinco anos: como disse Monteiro Lobato da saúva, ou o Brasil acaba com essa Constituição ou ela acaba com o Brasil.
O primeiro grande erro foi exclusivamente do governo. Como já havia sido feito ao tempo de Sarney, o governo não enviou ao Congresso um texto para ser examinado –sob o mesmo pretexto de não interferir no processo da elaboração da Lei das Leis.
Ora, em nenhum país medianamente civilizado se costuma redigir uma Constituição "de baixo para cima", por agregação de partes. O procedimento racional universalmente seguido consiste em ter-se primeiramente um texto preparado por um grupo de especialistas de alta qualificação, depois submetido ao Legislativo e, conforme o caso, apresentado ao referendo popular.
É, aliás, escrúpulo curioso da parte do atual governo, porque o anterior havia submetido ao Congresso em 1991 o "Projetão" e o "Emendão", propostas ambas sensatas e trabalháveis.
Em nenhuma democracia o governo pode furtar-se de um papel de liderança. É da própria regra do jogo. Todos os parlamentos são divididos pela variedade de forças neles representados, ao passo que o Executivo tende a representar o conjunto de forças dominantes.
E, francamente, os últimos governos têm-se devotado com espontânea alegria à edição de medidas provisórias, uma faculdade típica dos regimes parlamentaristas, onde a correspondente rejeição acarretaria a queda do governo e a formação de outro. Neste nosso pindorama surrealista, o governo não cai –reedita.
Em segundo lugar, o governo potenciou a sua responsabilidade ao insistir na emenda às Disposições Transitórias que criou o Fundo Social de Emergência, por conta de um plano de estabilização até agora não precisamente definido. O Congresso aprovou tudo, num raro ato de fé neste nosso mundo sem crenças. A discussão sobre a URV atrapalhou as atividades por mais um bom tempo –com o resultado final de que a dita pode ser mais ou menos qualquer coisa que o governo queira.
Por fim, a CPI do Orçamento acabou por tomar um tempo excessivo por uma variedade de razões e, com isso, fez o jogo das esquerdas corporativas, que querem encobrir um escândalo muitíssimo maior de desperdício e mau uso dos dinheiros públicos nas estatais.
Ainda assim, a revisão poderia ter sido feita se as forças majoritárias não houvessem cedido aos "contras", que pretendiam dar à sua oposição ideologizada um caráter de verdadeiro direito de veto. Numa democracia, as minorias têm direito de voto e não de veto. Infelizmente, não há nada de novo nisso. Grupos radicais e de interesses conseguem parar a vontade da maioria parlamentar que, por definição, representa, ela própria, a "maioria silenciosa".
Tem havido uma progressiva deterioração da qualidade dos constituintes. Os de 1946, uma grei excelsa. Os de 1967, bastante razoáveis. Os de 1988, um desastre. Isso reflete várias coisas. Brasília desencoraja pessoas que detestam vazios culturais; é visível a deterioração de nosso nível educacional. Mas o fator mais importante, de resto positivo, é que saímos de regimes elitistas para entrarmos na democracia de massa. Foi nas eleições de 1986 que pela primeira vez 52% da população votou. Enquanto não se elevar o nível cultural médio do "povão", não há porque esperar um Parlamento de sábios.
O Congresso Nacional está longe de ser perfeito, mas ele espelha afinal os contrastes da sociedade brasileira. Nele não escasseiam idiotas, mas, como dizia o vice-presidente norte-americano Hubert Humphrey, boa parte da população é idiota e merece ser bem representada. Mas o Congresso não é "o" culpado pela crise institucional. Tem a sua parcela de responsabilidade como os demais Poderes e como todos os eleitores.
No total, demonstrou uma rara coragem, cortando na própria carne, sob a pressão de uma opinião pública açudada até o paroxismo do linchamento. Mas a idéia da assembléia revisora "exclusiva" que reflete intenções sérias pode acabar levando a urgência a superar a prudência, e agravando a enfermidade que se quer curar.

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