São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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Sob o signo de aquarius

MARIA ESTER MARTINHO

A Super Bacana, mistura de loja e ponto de encontro, é o templo de uma nova safra de alternativos que reage a crença yuppie no trabalho obsessivo e põe o prazer acima de tudo. Dentro de um mês, a casa frequentada por clubbers, neo-hippies e tribos sortidas inaugura um bar para completar o parque de diversões "freak" da Vila Madalena e implantar de vez em São Paulo um estilo de vida que volta à moda em cidades como Nova York e Los Angeles
Até o último verão, podia-se atribuir a fama de hippie da Vila Madalena à má-vontade com que os moradores tradicionais do então pacato bairro paulistano classificavam seus novos vizinhos – artistas duros desembaracados às pencas nos anos 80. Mas foi em novembro de 1993 que a vizinhança ganhou motivo justo para esgrimir o termo. Em resposta aos anseios de diversão de uma nova safra de alternativos (gente jovem que tomou horror à crença yuppie no trabalho obsessivo e na grana), erigiu-se na rua Girassol um templo à estética "freak" dos 60/70. Com emblemas de paz-e-amor nas paredes, festinhas regadas a Jimi Hendrix e shows de surf rock no quintal. O que é aquilo? Uma casa? Uma loja? Um bar? O túnel do tempo? A era de Aquarius?
O templo chama-se Super Bacana – como uma canção tropicalista, da fase mais "hippie" de Caetano Veloso. Suas inventoras, Cláudia Solano e Paula Pinheiro, vinham respectivamente da publicidade e da astrologia quando, em férias no litoral, pediram a Iemanjá "uma luz". Como a multidão que invadiu a casa desde a abertura, as duas tinham descoberto que emprego não traz felicidade. Queriam mais. Queriam "fazer alguma coisa".
A inspiração divina superou a encomenda e a dupla se saiu com o primeiro filhote brasileiro do neo-hippismo, tendência identificável mundo afora. Cruzamento de Venice Beach e St. Mark's Place (sedes dos novos "freaks" californianos e nova-iorquinos), a Super Bacana foi simbolicamente incorporada ao circuito internacional quando David Pirner, cantor da banda Soul Asylum, saiu de lá com uma calça de passamanarias brilhantes que, achoum agradaria sua namorada. A saber: Wynona Rider, atriz de "A Época da Inocência".
Como a visita do cantor Evan Dando, dos Lemmonheads, a calça da celebridade foi mais uma cereja promocional em um bolo fadado a atrair enxames. Em um verão, a Super Bacana virou parada obrigatória dos alternativos sortidos de São Paulo – que se penduram na loja/Bar de quinta a domingo para o que parece ser uma celebração permanente do fim do mundo.
"A jaca aqui é forte", define Claudinha, metida em shorts jeans rasgados. Quer dizer, em língua muito própria, que a noite da casa não tem hora para terminar – e que bebe-se muito por lá. Entre as muitas cenas que já se tornaram folclore local, nenhuma é mais típica do que aquela que as donas fazem quando querem fechar a lojinha – e enfrentam renitentes gatos-pingados decididos a levar ao paroxismo sua discussão em torno do sentido da vida. Colóquios de bêbados atender por um apelido na loja: "a busca do inatingível".
Antes de tornar-se inconveniente, porém, a fauna que enche a casa nos fins-de-semana se diverte. Atraídos pela disposição inquebrantável das donas para a festa – e por sua preguiça para a discriminação social – , representantes das mais variadas facções de alternativos acorrem às noites regulares e às celebrações específicas da loja/bar. Nas festas da Super, os motivos paz-e-amor da parede compõem com os dreadlocks (tranças rasta) do gerente noturno, Lee; com o cabelão da chapeleira Silvia Lucchi; com as tatuagens que cobrem o corpo de José Francisco Borges, ex-dono do Der Temple; com a cabeça máquina 3 dos clubbers; com o look grunge do vocalista Peixes, Pedro Alves Pinto.
"A coisa é meio comunitária, familiar. A generosidade substitui a violência do cinismo social", diz Pedro. "Até plínio é benvindo aqui", afirma Paula.
Quem se aventurar entre as araras da Super Bacana, a loja verá passar diante dos olhos salada ainda mais completa. Símbolos hippies, flores, corações, estrelas, se juntam e tachas, caveiras e coturnos dos punks e metaleiros. "Destroy" e reciclagem, militarismo e humor combinam em looks que atraem o público da loja (aberta até as 2h), interessado em vestir-se com expressão. Ou, como prefere a artista plástica Dora Longo Bahia, frequentadora constante, "preocupada em mostrar o que é no que veste".
A geração que elegeu a Super Bacana seu "point" tem em comum mais do que a atitude ao vestir-se ou a simpatia, em graus diversos, pela causa neo-hippie – que preconiza a distensão social e a diversão a qualquer custo. São dissidentes da idéia de que não há destino fora de uma repartição – pública ou privada - nem estilo de vida possível além do que é cultivado pela maioria.
"Sou um artista desconhecido e quero viver meu trabalho", diz o cantor dos Peixes. "Não tenho US$ 4 mil que preciso para terminar o disco da banda, dirijo um Corcel 2 79, vivo de bico, mas pelo menos acordo à hora que quero".
Artista plástico e dono das visões pop que cobrem as paredes da Super Bacana – além de frequentador assíduo –, Zé Carratu, 40, dois filhos, é outro exemplo. Largou uma carreira brilhante na publicidade, de pois de 12 anos, para virar grafiteiro – integra, como o também superbacana Marcelo Bassarani, a trupe Tupi não dá, que fez miséria nas vias públicas de São Paulo no meio dos 80.
Quando criava programação visual para o Banco de Boston, em troca de régio salário, Carratu vivia aterrorizado por pesadelos de demissão sumária. Hoje, seus cenários, quadros e bicos na área de direção de arte lhe dão condições de viver como acha que deve. "Foi uma atitude hippie", diz.
Idealismo e cansaço são dois motivos recorrentes no trajeto dos novos alternativos em direção oposta à que apontam as promessas da sociedade de consumo – de resto cada vez mais "enxuta" na hora de criar empregos.
A modelo Julie Kowarick, 29, figura carimbada no álbum dos superbacanas, fez esperar por ela um contrato de US$ 150 mil coma agência Ford Models – quando chegou em segundo lugar na final do concurso "The Face of the 80's", aos 17 anos. "Tinha uma viagem de carro marcada para Canoa Quebrada, Ceará", conta. "Não ia perder por nada."
Anos mais tarde, Julie deixaria uma promissora carreira de modelo internacional – desfilou em Paris, Milão, Tóquio – para voltar ao Brasil e ter um filho. "A coisa afetada das modelos, a superficialidade, o culto da grana, tudo aquilo me fazia pensar: pra quê, meu Deus?", diz. "Agora estou aqui, sem um puto, mas feliz da vida."
Feliz não é exatamente como se sente a superbacana Dora Longo Bahia quando admite pintar em telas sem moldura para facilitar a estocagem do trabalho – que tarda a ser reconhecido, um pouco por sua resistência à idéia de "fazer lobby".
"Não vou ficar levando meu trabalho para galerista ver", diz. "Se ele fizer careta, vou ficar magoada." Quando não ensaia com sua banda Disk-Putas, com os também artistas plásticos Priscila Farias e Renato Cohen (só ele, o baterista, sabe o que é "mi"), Dora pinta como louca telas em que aparece morta, ora afogada, ora queimada, ora decepada. O que assusta nos quadros? "Sei lá. Acho que as pessoas não gostam de sangue." Ela gosta. "Não dá pra não ser pesado, hoje."
A confluência de artistas e de gente interessada em sobreviver sem ter que acordar cedo faz do Super Bacana, além de tudo, uma espécie de central de idéias alternativas. Dora e Zé Carratu fizeram juntos o primeiro clip da banda Disk-Putas, "Morte aos Titãs", Pedro faz estampas no mesmo ateliê que Paula; quinzenalmente, aos domingos, os proprietários do bar The Jungle, em Pinheiros, se juntam às superbacanas para produzir shows de bandas novíssimas, no palco virtual do pequeno jardim de cactos da loja.
Os shows são, segundo Claudinha, uma alternativa no momento mais terrível da vida dos alternativos. "Sábado é a jaca, né?", explica. "Domingão você acorda tarde, dá um rango, e aí vai fazer o quê? Ver o 'Faustão'?"
Outras conexões estão próximas. Em 30 dias, a Super Bacana espera estar inaugurando, no mezzanino da casa, um bar estilo americano – aberto 24 horas, com mesas de sinuca, fliperama e hambúrguer. Será o novo endereço da Lady Lucky, a lanchonete de Gigio – como prefere ser chamado o ex-proprietário do nightclub Der Temple. Desapropriado do endereço original, no largo da Batata, a lanchonete aterissa na Girassol para potencializar um negócio que Gigio considera "uma mina de ouro". "Sabe como é hippie", diz. Não está nem aí com nada. Um dia tem cerveja, outro dia não tem".
Ex-analista de sistemas – "tomava pau no teste psicológico, quando procurava emprego na área; diziam que eu não me encaixava" –, Gigio é da tese que negócio é negócio, antes de ser diversão. "Voce pode estar bem louco, mas se estiver do outro lado do balcão, tem que atender direito. Mas é melhor do que ficar atrás de um caixa de banco."
O novo bar da Super Bacana vai acabar de fechar um triângulo de lazer alternativo na Vila Madalena. Os outros vértices ficam a poucas quadras de distância – o Bar da Vila, que reúne a ala gay da população jovem do bairro, e o Jacaré Grill, churrascaria alternativa. O curto trajeto é cumprido a pé nos fns-de-semana por dezenas de habituês e curiosos, que se encontram, acertam detalhes de projetos, comem, bebem, resolvem fins-de-semana na praia e se atiram ao esporte do consumo alternativo – descolando, nas cestas de saldo da Super Bacana, qualquer coisa entre uma pantalona de sianinhas e um colete floral tricotado por uma favelada nas cores azul celeste, rosa-choque e dourado. Com a chegada do bar, estará configurado um autêntico parque-de-diversões "freak" na Vila. Sorte dos superbacanas.

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