São Paulo, quarta-feira, 11 de maio de 1994
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Mario Quintana era misterioso e fácil

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Aenorme popularidade foi, de certo modo, um azar para o poeta Mario Quintana, morto na semana passada. Virou autor de dísticos para folhinha, mensagens de ano novo, ilustrador de agendas para secretárias, e esse sucesso tende naturalmente a diminuir as atenções da crítica literária.
Pois é claro que os críticos não têm muito o que dizer diante da poesia imediata e fácil de Mario Quintana. Melhor "descobrir" poetas obscuros, "decifrar" chatices, do que elogiar o suave e acessível Quintana, que dispensa, com um sorriso, maiores explicações para os poemas que fez.
As secretárias, todavia, não se enganam, enquanto a crítica silencia. Quem não conhece aquelas mesas de PBX, onde sobre a madeira se coloca uma placa de vidro, e entre o vidro e a madeira a secretária põe seus poemas preferidos, cartões postais, estampas de orquídeas ou mensagens de Seicho-No-Ie? Bilac e Quintana são infalíveis nesse ambiente.
Não foi por acaso que se publicaram, ultimamente, "Agendas Poéticas", com aforismos e poemas de Mario Quintana engrinaldando os compromissos semanais.
Quintana foi um poeta "fácil" e popularíssimo. Ainda bem que existem poetas acessíveis no país. Walter Benjamin dizia que Heine (1797-1856) fôra o último poeta europeu a obter sucesso de público.
No Brasil, Vinicius de Moraes –maior poeta que Quintana- tornou-se popular graças a seu conúbio (epa!) com Jobim e Toquinho. Mario Quintana tornou-se popular sozinho.
Isto talvez tenha sido suficiente para que a crítica mais sofisticada tenda a ignorá-lo, enquanto queima as pestanas com poetas muito mais chatos.
Lendo as coisas de Mario Quintana, sinto que ele propõe um desafio para a crítica. É tão fluente, tão fácil, tão poético, que nenhum comentário se impõe; o sujeito que "entende de poesia" haverá de rebaixar-se ao nível da secretária ingênua que guarda versos do poeta em sua agenda ou na mesa de trabalho.
Mario Quintana tinha algo dessa modéstia, dessa graça, que é a de fazer versos como quem descobre, infantilmente, algo de mágico na vida. Não havia angústias ontológicas, asperezas modernas, crispações, incompreensibilidades em seus poemas.
E, ao mesmo tempo, Quintana não apostava nos clichês, no já conhecido.
A maior razão de sua popularidade, o maior segredo de Mario Quintana estava em ser compreensível sem ser banal; em descobrir metáforas claras e ao mesmo tempo surpreendentes. Era poeta sem ser obscuro, era original com naturalidade. Conseguiu uma das maiores proezas que se podem esperar da lírica: a junção entre o misterioso e o fácil.
Não um esforço na produção de enigmas e charadas, mas um clima de desentendimento, de distração, de "mundo da lua" que produz efeito imediato no leitor.
Há uma dose de mistério em seus versos que nunca descamba para o hermetismo: "A casa é acolhedora, os livros poucos. / Eu mesmo preparo o chá para os fantasmas". Ou a frase, luminosa, inexplicável, "Amar é mudar a alma de casa".
Não adianta explicar uma frase como essa. Não importa analisá-la. Ela surge como uma flor, como um cristal claro e pronto. Em momentos como esse, Quintana foi um poeta que mereceu a popularidade, não por ser fácil nem vulgar, mas por ser apenas poeta. Infeliz de quem não sabe que amar é mudar a alma de casa. Mas todo mundo sabe disso –só que não sabia, antes de Quintana ter escrito.
Daí a perturbadora "obviedade" dos poemas de Mario Quintana. São tão evidentes, que só podemos citá-los: "A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer". Ou algumas metáforas, ao mesmo tempo personalíssimas e universais: um par de sapatos pretos no beiral da janela, "dois velhos barcos, encalhados sobre a margem tranquila de um açude". Não há o que explicar.
Mario Quintana reunia três qualidades raras, qualidades de poeta, hoje em dia um pouco desmoralizadas. Primeira: a imaginação, a soltura quase que em estado de devaneio, a visualidade mágica das metáforas. Segunda: a eufonia, a musicalidade dos versos. Terceira: o aparente desleixo, o "descalorioso", o "inspirado", o tom "antioperário", boêmio de seus versos.
Há uma naturalidade inimitável nas obras de Mario Quintana. É como se tudo tivesse sido feito de "estalo", graças a um espírito vagabundo inspirado. Nada mais distante de Quintana do que o esforço, hoje em dia tão valorizado, do "fazer poético". É uma poesia quase que involuntária, que brota das distrações do autor, proeza desta coisa tão criticada hoje em dia, a inspiração.
Mario Quintana foi o poeta mais naturalmente poeta deste século. Isto lhe deu popularidade. A lição de alguns franceses –sobretudo Verlaine, Laforgue e Rimbaud– foi-lhe preciosa no sentido de conferir liberdade e graça (a graça é tudo para Quintana) ao "fazer" poético.
Soma-se a isto a influência de Antonio Nobre e Cesário Verde (para não dizer do Pessoa Alberto Caeiro), para que se construísse um autor avesso às crispações do modernismo, sensível às delicadezas já vacinadas contra o ímpeto revolucionário dos modernos. Penso em Prévert, em Valery Larbaud, em Max Jacob, em Francis Carco.
Este último foi classificado sob o rótulo de "fantaisiste". "Fantaisiste", entre nós, é Mario Quintana.
Uma certa ironia doce, que não se importa com a dupla solenidade dos parnasianos e dos modernistas radicais, que só se preocupa com a leveza, com a distração, com o olhar aberto e desatento que é o dos poetas sem escola e sem doutrina; que se deixa levar pela própria graça e pela pureza da percepção, que se descobre nos milagres das imagens simples, nunca vulgar e sempre fácil, realiza-se na magia de Quintana.
"Magia de Quintana": escrevi isso no parágrafo acima e caí no kitsch. Ele sabia, e aí seu maior refinamento, evitar o kitsch. Ser popular sem ser cretino –esse o feito espantoso que ele conseguiu.
Mario Quintana morreu, e cabe lembrar então uns versos de seu livro "Canções", de 1946: "Mas vamos fechar os olhos/E pensar numa outra coisa..."
Jean Renoir
A Sala Cinemateca promoveu, na semana passada,uma mostra dedicada ao centenário do diretor francês Jean Renoir (1894-1979). Vendo um de seus filmes clássicos ("A Grande Ilusão") senti o quanto o gosto atual pelo cinema está pervertido, desviado, viciado pela retórica americana.
Não me interessei (aliás, não sou cinéfilo) pelos movimentos de câmera, pelo virtuosismo propriamente cinematográfico que possa haver no filme.
Mas sim pelas lições de vida, pelos exemplos de nobreza, pela compostura –misto de generosidade e de nobreza– que havia nos personagens. Assim como no Tolstói de "Guerra e Paz", ou nas peças de Tchecov, estão menos em destaque os malabarismos do estilo do que a força real dos personagens, num filme como "A Grande Ilusão" de Renoir, interessa menos a virtuosidade de câmera, a presença do diretor, do que a atitude, a nobreza, o conteúdo pedagógico dos heróis em cena.
Erich von Stroheim é um nobre oficial alemão na Primeira Guerra. Pierre Fresnay é um pobre francês, aprisionado no campo sob a guarda de Stroheim. Os dois se entendem perfeitamente. A nobreza –francesa ou alemã– tem claros pontos em comum.
Já o proletariado –Jean Gabin e uma camponesa alemã– se entendem por própria conta. Jean Renoir quer dizer que as solidariedades de classe são mais fortes que as solidariedades nacionalistas –e que, portanto, toda guerra, entre países e entre caracteres nacionais, não passa de uma "grande ilusão".
Menos do que esta mensagem algo utópica, retenho do filme o caráter exemplar das atitudes, a nobreza limpa de todos os personagens envolvidos na guerra.
Jean Renoir impressiona, sobretudo, como diretor de diálogos entre os personagens.
O diálogo entre o nobre francês e o alemão; o diálogo entre o marido traído e o amante de sua própria mulher, em "A Regra do Jogo".
Os momentos, enfim, em que cada personagem dá tudo de si, num esforço puro de sinceridade e numa esperança de compreensão (Jean Gabin e a antiga amiga que ele quase estupra, em "A Besta Humana") –tudo isso revela uma humanidade, uma nobreza de alma, que restituem ao cinema o valor pedagógico, moral, tornado escola de nobreza e de sutil cortesia face aos sentimentos alheios, que vale a pena ver.
Ganhamos, com Jean Renoir, uma distinção de atitudes, uma força de personagens, que o cinema perdeu há muito tempo.

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