São Paulo, quarta-feira, 11 de maio de 1994
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O boêmio falido

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Como Rodolfo, no primeiro ato de "La Bohéme", descubro hoje que estou sem inspiração, "no sono in vena" –diz o poeta na ópera de Puccini, sem saber que a vizinha bateria à porta e tudo começaria. A secura de agora não é ressaca das emoções idas e vividas, é apenas fadiga. Uma espiada no noticiário internacional e a gente fica sabendo como está o mundo: Mandela toma posse na África –o fato mais importante desses últimos 20 anos. Rainha da Inglaterra e presidente da França atravessam a Mancha por baixo do canal. Israel e OLP estão chegando a um acordo –embora as bases ainda estejam longe de qualquer acordo. Não importa: liderança é para isso: levar a base e não ser levado por ela (isso não chega a ser um recado para Lula, mas seria ótimo se ele compreendesse o que se pede de uma liderança).
Com tanta fartura lá fora, olho para o nosso quintal: Ibsen, Fiuza, Biscaia (retratando-se publicamente dos desvarios daqueles dias em que parecia um Torquemada e admitindo agora que não tem prova para provar nada a não ser o óbvio).
À noite, para ficar minimamente informado, sou obrigado a aturar os esgares e lágrimas, a truculência dos âncoras da TV que embarcam no primeiro jato do primeiro escândalo e ficam disponíveis para o próximo. A impressão é que o Brasil entrou em descompasso não com o mundo –que há miséria em toda parte– mas com a história. Até agora, quase 500 anos depois de Cabral, o único fato que produzimos foi o Descobrimento –cinco ou seis linhas numa história universal séria. Ainda bem que, avaros em produzir histórias, somos pródigos em consumir emoções. E elas não faltam, desde a morte de Ayrton Senna ao sequestro do pai do Romário e a cara de pau do governo garantindo que a inflação vai acabar no dia 1º de julho –como se a economia fosse a passagem de um cometa, um eclipse, um fato cósmico, inapelável.
Realmente, "no sono in vena" como o poeta de Puccini. Bateram à minha porta. Quem sabe, é a "povera piccina" da ópera. Não, é o porteiro trazendo uma conta para pagar. Já fui boêmio de maneira mais divertida.

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