São Paulo, sábado, 14 de maio de 1994
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New Order funda marginalidade com conforto

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Há um espectro assombrando o vídeo "A História do New Order" ("NewOrder Story", 1993). É o fantasma de Ian Curtis, líder e vocalista do Joy Division, que se matou em 1980, aos 23 anos.
Seria impossível contar a história do New Order sem se referir a suas origens em Manchester (Inglaterra): o grupo se ergueu das cinzas do Joy Division, com os três membros restantes (o guitarrista Bernard Sumner, o baixista Peter Hook e o baterista Stephen Morris) aos quais foi incorporada a tecladista Gillian Gilbert.
Toda a primeira parte desse vídeo feito de entrevistas, clipes e trechos de shows, gira em torno da imagem de Ian Curtis, da fetichização do ídolo.
O Joy Division durou "cerca de quatro ou cinco anos", nas palavras de Sumner, o suficiente para deixar um mito. Bono, do U2, comenta "a voz sagrada de Ian Curtis". A aura do suicídio –Curtis foi ao cinema ver "Stroszek", de Werner Herzog, voltou para casa, colocou Iggy Pop na vitrola e se enforcou– só realça ainda mais a mitologia.
Ao mesmo tempo, os sobreviventes tentam sublimar os efeitos. Narram como colocaram Curtis dentro do carro para levá-lo ao hospital como se contassem uma anedota. Brincam que, na verdade, Gillian Gilbert matou Curtis para poder entrar no grupo. "Formamos o grupo para superar o suicídio", diz Sumner, que se tornou vocalista após a morte de Curtis.
A essa tentativa de sublimação, vem se sobrepor uma voz em "off", que tenta desesperadamente provar que o New Order é tão bom –ou melhor– que o Joy Division, tenta o fetiche inverossímil da banda remanescente: "Esta é a história do New Order, a mais caótica da história do rock n' roll. (...) O New Order fez do cenário pop algo perigoso. (...) Poderiam ter vendido mais discos que qualquer outro grupo, mas preferiram seguir como independentes".
O espectro de Ian Curtis –presente tanto no fetiche como na denegação– é sintomático da própria identidade do New Order. A morte está no centro: é a fundação. A partir daí tudo é realizado como tentativa de contorná-la, negá-la ou encobri-la.
Esse processo é detectável na própria música do grupo, embrenhando-se progressivamente pela dance music e o tecnopop –que distorce os sons eletronicamente, submete os ritmos mais duros a um ornamento melodioso, com notas metálicas prolongadas em eco. Um mundo menos duro e menos direto.
Se o Joy Division e Curtis (sua morte e sua postura melancólica) significavam uma descida aos infernos, um contato direto com a experiência mais radical –uma tradição da música pop "moderna"–, o New Order vai procurar sua identidade no sentido oposto, numa relação totalmente mediada com a experiência.
Diante do trauma, viram o rosto, passam a fazer uma simulação da experiência em vez de procurar vivê-la, uma relação mais irônica, distanciada –e por vezes cínica– com a vida, uma "nova ordem".
Quando surgiu o nome da banda, falou-se da conotação fascista, hitlerista. Mas New Order diz mais respeito a uma nova era, pós-moderna, marcada por uma relação mais blasé e irônica com o sofrimento, uma relação tecnopop com o mundo, um certo descaso, um novo hedonismo.
"Eles tornaram a dance music mais cool. Não tenho certeza de que haja algo além de ilusão", diz o engenheiro de som John Robie. "A fascinação pela marginalidade (mas agora) com conforto", completa um dos entrevistados.

Vídeo: A História do New Order
Diretor: Kevin Hewitt
Distribuidora: PolyGram Vídeo

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