São Paulo, quarta-feira, 18 de maio de 1994 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
Bem e mal flertam em `Na Linha de Fogo'
DANIEL PIZA
"Para pontuar a monotonia." Essa resposta de Mitch Leary (John Malkovich) a Frank Horrigan (Clint Eastwood) mostra que o filme "Na Linha de Fogo", que agora sai em vídeo, tem tutano. Não é uma frase qualquer. Raras vezes bem e mal tiveram uma relação tão íntima no chamado cinema de ação. Horrigan é um agente secreto do governo dos EUA, decano, que carrega consigo a frustração de não ter evitado a morte de John Fitzgerald Kennedy em Dallas (Texas) em 1963. Era segurança pessoal do presidente. Leary é um gênio da eletrônica e do disfarce, um camaleão provocador cujos telefonemas a polícia não consegue rastrear. Pretende matar o atual presidente americano, um toupeira que está em campanha pela reeleição. Em seis conversas telefônicas, Horrigan e Leary, tratando-se respectivamente por Frank e Booth (nome do assassino de Abraham Lincoln), estabelecem um mundo próprio, à parte, incompreensível para os outros agentes. Sussuram-se, falam cifradamente, cutucam seus defeitos como amantes. Mas esse é um filme para machos. Há uma competição entre os dois, a ser travada lealmente, ainda que Leary repudie o bom-mocismo de Frank, e Frank a psicopatia de Leary. O que os move e identifica é o prazer do jogo. (Não é curioso que, quando dois homens querem se transmitir carinho, simulem se bater?) O filme é mais. É principalmente sobre ética pessoal e profissional nestes tempos cínicos. O filme é também um protesto contra a política-espetáculo, feita para a mídia. A campanha do presidente, por exemplo, muda de rumo a todo instante, em virtude de alterações de pontuação nas pesquisas eleitorais. Com isso, os agentes da equipe de segurança do presidente –entre os quais Horrigan e sua amada (Rene Russo)– não têm vida particular, vivem tensos, mal podem namorar ou se divertir. Horrigan, um estóico, acha porém que a única coisa que resta a um homem é fazer bem seu trabalho. Sem desculpas, sem arranjos, sem emocionalismos. A única moralidade que existe é a individual. Leary tem a mesma ética; ou melhor, diz ter. Como Horrigan, sempre foi impecavelmente eficiente. Mas traz do passado um trauma bem diferente do de Horrigan e não age mais como profissional, age para se vingar. Malkovich está brilhante. Construiu um anticristo plausível, com sua mordacidade verbal e seu sorriso de enxofre. Domina Horrigan-Eastwood em seus "papos", mesclando sua admiração e seu dó por ele em todas as nuances. Leary, no fundo, leva o jogo mais a sério que Horrigan. Horrigan sabe o valor dos prazeres fúteis (música, namoro); Leary, não. Às avessas, está preocupado com causas abstratas. Pontua mal sua monotonia. "Nós dois pensávamos que este fosse um país especial", diz a Horrigan. Mas aí vem o final do filme e o estilo é "Duro de Matar", ou seja, show de efeitos. Por quê? Talvez para mostrar que, para fazer um filme assim, dentro do sistema hollywoodiano (o epílogo se passa em Los Angeles), é preciso fazer concessões. Se não, não há bilheteria e não se podem fazer outros filmes menos superficiais. Essa, no entanto, não seria uma idéia tão cínica quanto as do chefe de campanha satirizado no filme? Título: Na Linha de Fogo Direção: Wolfgang Petersen Produção: EUA, 1993 Distribuidora: LK-Tel Vídeo Texto Anterior: Morgan Freeman disseca o apartheid em estréia na direção Próximo Texto: "Lamarca" é um filme brasileiro perfeito Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |