São Paulo, quarta-feira, 18 de maio de 1994
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Problemas da revisão exclusiva

RENATO JANINE RIBEIRO

A idéia de uma assembléia exclusiva para a revisão constitucional suscita grandes dúvidas operacionais –como, por exemplo, a adoção do voto distrital ou proporcional, de candidaturas avulsas ou partidárias, o direito ou não de seus membros concorrerem a novos cargos eletivos–, que deverão ser tratadas no devido tempo. Mas temos de levantar uma questão prévia: ela vale a pena?
Há dois fortes argumentos em favor da assembléia revisora exclusiva. Não é só que o Congresso atual falhou na tarefa de rever a Constituição de 1988. É que uma assembléia especialmente eleita fará com que os temas da revisão sejam fruto de ampla discussão nacional.
Não estaremos, como em 1986, escolhendo deputados e senadores cujas idéias sobre o texto constitucional até os eleitores mais leitores ignoram. Um debate nacional, antes de se eleger a assembléia revisora, apontará propostas as mais diversas, mas sobre as quais os cidadãos se terão manifestado. Teremos, enfim, uma discussão sobre o que o país quer ser e por quais meios.
Se este argumento já é bom, some-se outro. Se o grande erro em 1986 foi não termos uma Constituinte exclusiva, como queria sobretudo a esquerda, isso resultou do fato de que o processo então realizado em nenhum momento extravasou os poderes constituídos. Ora, não é absurdo os três poderes constituídos monopolizarem a ação que justamente os constituiu, isto é, a Constituinte?
Pois foi o que fizeram: um Executivo mal eleito propôs que um Legislativo de rotina, instalado pelo chefe do Poder Judiciário, desse ao Brasil uma nova Constituição.
Ora, mais e mais se firma a opinião de que o país só avançará com uma pressão fortíssima da sociedade sobre as instituições do Estado. A direita as acusa de corporativistas e quer a privatização. A esquerda critica-as por estarem a serviço do capital e fala em desprivatizar o Estado.
São propostas antagônicas, mas o que as torna democráticas é a convicção, comum a ambas, de que só com a pressão dos grupos sociais organizados o Brasil poderá ter um setor público digno deste nome.
Uma reconstituinte exclusiva vai nesta direção. Além de seu sentido pedagógico, expresso na difusão do debate pelo país, ela será um fator a controlar os políticos por profissão, a exigir deles e do Estado que melhorem.
Insisto: o Estado só mudará sob pressão e é benvinda toda pressão democrática, isto é, que tenha meios transparentes e inclua entre seus fins a supressão da miséria.
Mas, se estes argumentos pela revisão exclusiva são poderosos, não são decisivos. Há duas boas razões a moderar o entusiasmo.
A primeira é que será inevitável uma assembléia revisora, com poderes quase plenos, pôr-se a escrever uma nova Constituição, em vez de limitar-se a revisá-la. E será conveniente mudarmos completamente de Carta, a apenas sete anos de idade da atual? Para quê um texto novo, se nossa Constituição, sob tantos aspectos, é exemplar? Ela é ótima nos direitos humanos e, ouso dizê-lo, em quase toda a sua extensão.
Tanto que precisa, apenas, de uma revisão. Em alguns casos, uma mera errata: eliminar a proibição de professores estrangeiros nas universidades. Em outros casos, de mais que isso: redefinir o imposto, a Previdência, o controle sobre os três poderes, as fronteiras entre o público e o privado.
Mas valerá a pena, por causa disso, jogar fora uma obra inteira e escrever algo completamente novo? Porque será bem ingênuo imaginar que uma assembléia, podendo redigir outro texto, se contente em corrigi-lo.
A segunda razão é que, a rigor, nosso problema não está tanto em mudar a Constituição, mas em regulamentá-la e aplicá-la. Ou seja, a questão não se resume na tarefa constituinte, que uma assembléia exclusiva pode retomar, mas afeta diretamente o papel dos três poderes, que cumprem mal as tarefas de votar leis, de governar, de dispensar justiça. Eles não estão à altura das qualidades da atual Constituição. O que garante que cumprirão uma nova?
Será, em suma, que nosso problema é de um texto, ainda que magno? É da tradição ibérica querer resolver os problemas sociais, políticos e econômicos mediante diplomas legais.
Apostar demais na revisora traz o risco de esquecer que o problema não está no texto, mas na relação de nossa prática com ele. Precisamos é parar de pensá-los em separado, segundo registros diferentes, usando-se o texto como bela declaração de princípios que justifica uma prática sórdida, sem princípio nenhum.
Não dá, pois, para esquecer que o essencial é a escolha e, sobretudo, o controle social dos eleitos. O importante não é excluir os políticos, é renová-los, através de um forte choque de qualidade. Este processo não se esgota na revisora, embora possa passar por ela.
Enfim: a discussão mal se inicia. A assembléia esclusiva pode ser um bom começo para mudar o Brasil. Mas é, como qualquer outra proposta, uma má salvação para o país. Na verdade, nosso problema não é como salvar o país. É como parar de salvá-lo. A revisora pode ser útil neste sentido, trazendo sangue novo à política e pressionando as instituições. Mas depende de como sua proposta for trabalhada.

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