São Paulo, sexta-feira, 20 de maio de 1994
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Assassinatos permitidos

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

O descaso com o qual se tem tratado a saúde de 70% da população, que não tem recursos para pagar pela saúde, tem raízes na cultura do nosso país.
Assistência médica, para quem não paga diretamente por ela, é considerada um favor e não um direito. Agradece-se quando se recebe e não se reclama quando não se tem.
Esse erro conceitual –no fundo, todos pagam pela saúde– tem permitido que os governos, por incompetência e desconsideração, causem centenas de mortes (leiam-se assassinatos) evitáveis sem responderem penalmente por isso.
Além da razão mais óbvia, que foi a diminuição do orçamento da saúde pelo governo federal de US$ 80 por habitante/ano em 87 para US$ 29 em 93, desrespeitou-se a Constituição quando se recentralizou o sistema no final de 90 e início de 91, destruindo a municipalização que apresentava excelentes resultados em São Paulo.
Os trabalhadores de saúde voltaram a ser miseravelmente remunerados; os dirigentes da saúde têm sido escolhidos sem critérios e trocados como se troca de camisa, desconfiando qualquer projeto sério.
O resultado é o caos, alardeado pelos abutres que querem utilizá-lo para justificar um bom negócio para as companhias de seguros dentro do modismo neoliberal, que é a privatização da saúde. Enganam-se totalmente os cidadãos e os médicos que imaginam ser beneficiados com esta solução.
A crise tende a se agravar com o programa de estabilização econômica, monetarista, sem qualquer componente de desenvolvimento partilhado ou de políticas compensatórias competentes da área social.
Rouba-se o povo, assassinam-se cidadãos, desrespeita-se a Constituição. Engana-se a todos com planos econômicos cujo objetivo maior é a manutenção dos privilégios das elites. E nada acontece porque sempre se escolhem os pobres e desamparados para o sacrifício, sabendo do seu fraco poder de reação.
Não quero continuar sendo cidadão de um país de assassinatos permitidos. Desculpem-me a indignação, mas convivo diariamente com mulheres morrendo de câncer por falta de papanicolau nos postos de saúde; com recém-nascidos escolhidos para morrer, para dar lugar a outros que têm mais chance, nas UTIs dos berçários com insuficiência de leitos.
Meu silêncio seria a cumplicidade porque sei que isto pode ser evitado, bastando para tanto aliar vontade política, competência técnica e compromisso com as necessidades de 70% da população, e não com interesses dos 10% de privilegiados.

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