São Paulo, sexta-feira, 20 de maio de 1994
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Nietzsche fundou terrorismo do pensamento

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

\<FT:"MS Sans Serif",SN\>O filósofo alemão Nietzsche, que tem sua obra revisada em artigos de pensadores franceses, e sua mãe
SD-ARC: Cultura
II05N~3J.JPG.Crédito Foto: Folha Imagem
Nietzsche fundou terrorismo do pensamento
Nos anos 70, a Editora Abril lançou uma coleção de livros hoje famosa, "Os Pensadores". Foi um sucesso espantoso.
Clássicos da filosofia vendidos em banca de jornal. A idéia coincidiu com a expansão do ensino universitário particular, com a mania (hoje estranhamente extinta) dos fascículos e, em uma palavra, com as aspirações de uma nova classe média produzida pelo milagre econômico.
Lembro-me que, no começo, a série "Os Pensadores" era vendida nas bancas com fumos de nobreza e de rigor. Volumes de capa dura azul, com arabescos dourados, seguiam-se em estrita ordem cronológica: primeiro os pré-socráticos, depois Platão, depois Aristóteles, e assim por diante, até Bertrand Russel, Chomsky (eram tempos de Chomsky) e Heidegger, que ainda estava vivo.
Já ouvi dizer que Heidegger vendeu mais livros no Brasil do que na Alemanha, graças a "Os Pensadores". País estranho, este em que vivemos.
Mas, depois desta fase capa dura, a série da Abril conheceu modificações. Atendendo ao público universitário, reeditou-se com capa mais moderna. Houve várias reedições.
Quando começou a abertura democrática, a ordem cronológica do aparecimento dos livros em banca se modificou. A série foi reinaugurada começando com Marx. Era o tempo em que Lênin estava proibido, e nas reuniões da SBPC vendiam-se cópias clandestinas de sua obra.
Nos anos 80, o ambiente já era diverso. Uma nova reedição de "Os Pensadores" foi anunciada pela televisão. E o volume que inaugurava a série era o dos textos de Nietzsche. Aparecia o rosto folclórico do filósofo alemão (1844-1900), com aquela bigodeira, enquanto uma voz em "off" declamava uma das frases de seu livro "Ecce Homo": "Eu sou dinamite..."
Era como que um trailer de Godzilla. O advento dos dinossauros atômicos. Preparai-vos, macacos e congêneres. Estava chegando a dinamite. Nietzsche vem aí.
A França agora assiste a uma revisão desse processo. "Por Que Não Somos Nietzscheanos" é o título de uma coletânea de artigos, assinados por Luc Ferry, Alain Renaut, Vincent Descombes e outros, agora traduzida no Brasil pela Editora Ensaio.
As reações à obra de Nietzsche obedecem a um movimento pendular. Ora ele é considerado um canalha, um precursor do nazismo, um monstro. Ora ele é considerado um iconoclasta, um liberador, um benefício para a humanidade.
Houve um nietzcheísmo à la Gide, defesa dos impulsos secretos e da pureza pessoal de quem se livrasse das convenções.
Houve o Nietzsche nazista, detrator da moral cristã, da democracia, elogioso das "bestas loiras" (cf. "A Genealogia da Moral"), adepto da violência contra a compaixão, da escravidão contra a igualdade, da aristocracia contra os homens "do rebanho" –isto é, os escravos, os proletários, os fracos, que por ressentimento e ódio contra o opressor criaram um Deus à sua imagem e semelhança. Isto é, Jesus, o crucificado, o plebeu, o pobre, o fraco, ignorante do ódio que tinha no próprio coração.
Depois, fez-se um longo e ainda inacabado esforço da "desnazificação" de Nietzche. Ele não era anti-semita, por exemplo. Documentos claríssimos provam que ele não era mesmo. Há uma carta dele à sua irmã, ela sim, uma nazista odiosa, repudiando o anti-semitismo.
Nos anos 60, em especial na França, a moda Nietzsche pegou fogo. Não, ele não era de direita. Era um campeão da liberdade individual, da auto-realização, da crítica à democracia burguesa, da crítica ao positivismo e à crença no progresso. Era um mestre da desconfiança, um mestre da suspeita. Era um crítico radical da civilização e da cultura.
Foi, com certeza, o mais ateu dos filósofos. "Deus morreu", escreve ele num célebre aforismo. E, diz Nietzsche, ser ateu não é nenhuma brincadeira. Significa também negar, como emanações espúrias da metafísica, a idéia de "bondade", de "direitos humanos", de "justiça", de "verdade", de "ciência". Tudo isso, e mesmo a idéia de "filosofia", não passa de preconceito teológico, de religião disfarçada.
Alguns filósofos franceses tratam, com o livro "Por Que Não Somos Nietzscheanos", de dar um basta a esta euforia destruidora, a esse ateísmo completo. Afirmam, em alto e bom som, sua crença na democracia, nos direitos humanos, na Razão.
O livro é, entretanto, ambíguo. De um lado, propõe-se a ler Nietzsche "ao pé da letra", revelando passagens de seus livros que deixam os cabelos da gente em pé, e notando suas contradições. De outro lado, propõe-se a "pensar com Nietzsche, contra Nietzsche". Seria usar de suas estratégias, de seu método, para criticá-lo.
No primeiro aspecto, "Por Que Não Somos Nietzscheanos" é bem-sucedido. Renova-se, à sua leitura, um horror muito salutar frente às barbaridades escritas pelo filósofo. Que nem era muito filósofo. Era mais um terrorista do pensamento, um teólogo ao contrário.
Não há defesa da aristocracia e da nobreza mais vulgar do que a feita por ele. Estridências ressoam em livros como "Para Além do Bem e do Mal" e "Genealogia da Moral". Há ridículos de estilo em "Ecce Homo" e "Assim Falava Zaratustra". Excelente escritor, Nietzsche tinha o defeito de empolgar-se demais consigo mesmo; embriagado com as imensidões ou com as tolices de sua "visão" do eterno retorno, da vontade de potência, do super-homem, ele bebia no caos e vociferava.
Era um plebeu. Grandes passagens poéticas em sua obra ficam comprometidas pela ansiedade descontrolada, por um tom que é às vezes de profeta, às vezes de bufão. Escolheu, na peça de Shakespeare, desempenhar o papel do "Bobo" contra a decadência do rei Lear. Com a diferença que se acreditava o vilão Edmond.
Ainda assim, muito do que ele diz merece ser levado a sério. Psicólogo infernal, sabe o quanto de maldade se esconde sob a compaixão; o quanto de vileza se esconde na democracia moderna; o quanto de covardia existe nas almas virtuosas.
Mas voltando ao livro. Senti falta do quanto se poderia fazer ao pensar "com Nietzsche, contra Nietzsche". Criticar suas idéias é uma coisa. Outra coisa é pensar: "Por que Nietzsche obteve tanto sucesso entre esquerdistas como Foucault?" E por que a esquerda, hoje, é tão adversária da razão, do progresso, da universalidade, do Iluminismo, nas raias de Nietzsche? E por que falar em Razão, em Progresso, em História –tudo com letra maiúscula– virou coisa de direita hoje em dia?
Allan Bloom, em seu "O Declínio da Cultura Ocidental" (ed. Best Seller), dá algumas pistas para esse fenômeno. Diz que o relativismo cultural, o jargão da "autenticidade", a crença nos próprios valores grupais –negros, homossexuais, coreanos, porto-riquenhos, irlandeses– justifica e promove um nietzscheísmo de massa.
Como não há "razão universal", vivemos um mundo em que "tudo é válido" –do horóscopo ao budismo, do tarô à psicanálise.
Nietzsche foi, de fato, dinamite.
Mas os autores de "Por Que Não Somos Nietzscheanos" não vão tão longe quanto Allan Bloom. Investem-se do poder que há em ser defensor da democracia e da universalidade da Razão. Lembram que apoiar os direitos humanos, contra Nietzsche, é afinal de contas uma opção política.
O resultado é que "não pensam contra Nietzsche, com Nietzsche". Fosse esse o caso, teriam de encarregar-me de descobrir o quanto de interesse mesquinho, o quanto de gritos de rebanho, o quanto de vulgar, há no nietzscheísmo atual. Levantam, com razão, os absurdos do autor. Mas, no momento atual, tais apelos à razão convencem pouco.
Força retórica, violência persuasiva, estão presentes em quase todos os artigos da coletânea. Falta, creio, uma dose de desprezo. E, sem isso, –eis uma lição nietzscheana– não dá para ir tão longe nas críticas a esse pensador, o que não torna esse lançamento menos importante: os autores prestam um belo serviço.

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