São Paulo, sexta-feira, 20 de maio de 1994
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A paisagem condenada

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – O assunto é municipal: a Justiça autorizou a construção de um grupo de edifícios na encosta do morro Dois Irmãos –um dos logotipos do Rio, marco visual e comum de três praias: Arpoador, Ipanema e Leblon. Não entro no mérito jurídico da questão. Mas lamento a decomposição da paisagem –que ali estava, desde que as camadas de lavra romperam a crosta do planeta e fizeram do Rio a mais extraordinária combinação de mar e montanha.
São duas pedras colossais erguidas em ponta, justo na linha continental que mergulha no azul do oceano. São picos antigos que parecem guardar, petrificados, o momento em que surgiram das lavas incandescentes num tempo em que o mundo não era mundo e o espírito de Deus pairava sobre as águas.
Ainda não havia dia e noite. Elas ali estavam, emolduradas pela vegetação que parecia respeitar o ímpeto com que se alçavam das profundezas e recortavam o céu, enormes e assombrosas, como monstros fatigados de fogo, repousados em rocha.
A vetegação –que será violentada– forma uma espécie de caule donde emergem as duas corolas de pedra, nuas e fraternas pedras, cenário que o pôr-do-sol mais famoso do Rio incorpora e engrandece.
Não conheço o projeto imobiliário, mas é fácil imaginá-lo. Uma mistura de Miami e Côte, tudo bem, não fosse a cidade o "scherzo" de uma sinfonia fantástica. Uma coisa é fazer espigões em Nova York, São Paulo e Tóquio, cidades planas, de horizontes amplos.
O Rio, sobretudo em sua parte litorânea, já sofreu atentados abomináveis. Ergueram-se muralhas de concreto e vidro cortando a linha das montanhas que secam ao sol o corpo de granito encharcado pelas águas do Dilúvio.
Bem ou mal, restou aquele pedaço de verde e negro que serviu de referência às canoas tamoias e deslumbrou as caravelas de Portugal, as naus da França.
Não sei quando surgirão os primeiros andaimes. Olho mais uma vez a paisagem condenada, vítima, testemunha e cúmplice do mundo em que vivo. Olho, guardo e vou embora –com o orgulho de homem em farrapos.

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