São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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João Cabral prefere a ironia ao humor

SEBASTIÃO UCHOA LEITE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em João Cabral de Melo Neto nem a ironia, nem o humor puro, são dominantes. Mas a ironia foi se afirmando, na maturidade, como um viés marcante pela "agudeza" conceptista de um discípulo de Quevedo. Humor x ironia: se não antípodas, são linhas paralelas que não se encontram. O Humor é primo germano da arte, o inútil os aproxima por uma qualidade negativa: não é contra nada, ele é per se.
E o "nonsense" dos "limericks" é exemplo disso. A paródia e a sátira são gêneros irônico-críticos, em troca, como em Erasmo, Swift, Quevedo etc., mestres críticos. Mas Sterne (Tristan Shandy), Lewis Carroll, Edward Lear etc, eram humoristas. São famílias distintas. Há autores, porém, que pertencem às duas. A poesia erótico-satírica de Marcial é exemplo de sátira com imagens extravagantes, como a do tipo que tem nariz tão comprido que pode cheirar o próprio membro. É humor, é o puro "nonsense" burlesco.
João Cabral é tudo, menos "sem compromisso". Tem, além de empenhos éticos particulares, uma ética genérica: a atividade, o espírito crítico, a trilha do difícil e o domínio da "vontade" sobre o "desejo". Por isso a sua opção linguística é a ironia, não o humor, que comparece mais em seu aspecto de nagatividade suicida, de humor negro, como em "Os Três Mal-amados", na fala obsessiva de Joaquim, o suicida. Herança drummondiana, ainda em "Os Primos", e muriliana nos apodos-paradoxos de "manequins corcundas" e de "cantora muda" nos primeiros livros.
Já em "Antiode" a linha irônica se define "contra a poesia dita profunda", leitmotiv que reemergirá depois em "Retrato de Poeta" ("Museu de Tudo"). Ironia linguística contra certa concepção poética, a das "mil maneiras/ de excitar/ negros êxtases (...)". No "negro" "Cão sem Plumas" ela se faz mais agressiva, mais sarcasmo do que ironia, ao falar das "salas de jantar pernambucanas", onde "as grandes famílias espirituais" da cidade "chocam os ovos gordos/ da sua prosa". Aí gritam os "Ós" de "chÓcam", "ÓvOs" e "prÓsa", isomorfismo fônico/ideológico. Similarmente, em "O Rio", fala da "história doméstica/ que estuda para descobrir, nestes dias,/ como se palitava/ os dentes nesta freguesia", onde a imagem dos "dentes" palitados mordem a placidez da "história doméstica" (o establishment local).
Posteriormente, em "Dois Parlamentos", a ironia não é ocasional, mas estrutural. Nos dois textos, "Congresso no Polígono das Secas" e "Festa na Casa Grande", são criadas duas opções de leitura: contínua (a ordem numérica) e descontínua (sequência dos blocos nas páginas). Só essa proposta, por si, é irônica para João Alexandre Barbosa ("A Imitação da Forma"), pois reiteram o mesmo discurso negativo.
A imitação da linguagem é satírica: os discursos criticam "de cima" a realidade ("cemitérios gerais", no primeiro, e "o cassaco de engenho", no segundo, que, de volta, pelo seu impacto, critica esse discurso. Seria essa a "ironia linguística" mais estruturada do gênio construtivo dessa obra. Mas, pela intensidade, é em "Serial" e em "Educação pela Pedra", que temos, talvez, os momentos mais emblemáticos dela.
Em "Generaciones y semblanzas", ela alfineta a pose meditativa ("couves meditabundas") de certa poética; a retórica oca ("expressão estentórica", "caldeira fisiológica"); a prática intempestiva ("aos trancos entre as coisas") e a linguagem da insídia ("o parasita simples/ e o de alma insidiosa"). No "Velório de um Comendador", o comendador-mercador se torna mercadoria, ironia resolvida em oxímoro.
Em "Sobre o sentar-/ estar-no-mundo", o título reflete, pela imagem do "sentar", situações antagônicas de "estar-no-mundo" entre os que "sentam poltrona" e os que "sentam bancos ferrenhos, de colégio", ou seja, entre a acomodação e o desconforto existencial. A imagem do "sentar" se une a do "comendador" (um emblema de classe) em "Comendadores Jantando". "Sentar", "assentar" e "fundo" se montam em "fundassentados", um "mot-valise" irônico. Assim, a imagem de acomodação diante de "questões pré-cozidas", resolve-se linguisticamente, e se reitera e se radicaliza no complementar "Duas fases do jantar dos comendadores".
Exemplo do fio lógico que conecta os diversos momentos da obra de JC são certas reiterações imagéticas. Assim, a escatologia (excremental) interliga momentos tão diversos quanto os de "Antiode" ("Poesia, te escrevo/ agora: fezes, as/ fezes vivas que és"), de "Imitação de Cícero Dias", em "Escola das Facas" ("um inventado cometa: o Merda"), de "Retrato de Poeta" ("Pois tal meditabúndia/ certo há de ser escrita/ a partir de latrinas/ e diarréias propícias") em "Museu de Tudo", e de "As latrinas do colégio marista do Recife", "Teologia Marista" ("frades em volta da mesa/ bebem a urina voltaireana/ como uma honesta cerveja") e "Espa¤a en el Corazón" ("A Espanha é coisa dessa tripa/ (digo alto ou baixo?), de colhão"), em "Agrestes".
As evocações escatológicas são o auge do maldizer cabralino. Elas tornam mais áspera a ironia, que se faz sarcasmo. Se a poética cabralina é geralmente uma poética contra, nesses poemas a virulência (exceto em "Espa¤a en el Corazón", onde a escatologia inverte o sinal e os torna positiva, ao louvar o lado cru da Espanha) transborda do sentido irônico, ao investir contra as "bêtes noires" do poeta.
Em "Retrato de Poeta", por exemplo, é a "poesia/ meditabunda/ que se quer filosofia", uma glosa (20 anos depois), do mote "(contra a poesia dita profunda)" de "Antiode". Seria preciso indagar o que seriam a "coragem" e o "rigor", exigidas pelo poeta nesse fascinante texto, como categorias. Decerto seriam insuficientes para compor obra tão rara como a dele, sendo a criação poética indiferente à primeira e tendo um outro parâmetro que o rigor filosófico. Seria difícil definir o rigor poético. Melhor falar de inventividade, o que sempre sobrou na obra desse poeta.
Nem todos os aspectos da ironia cabralina se pode expor aqui, nem sequer se desenvolver os expostos, por motivo de limitações de espaço. Também há momentos de humor puro (sem ironia) na obra do poeta. Por exemplo, na obra posterior a "Agrestes" encontram-se, em "Crime da Calle Relator", deliciosos relatos de "causos", puramente humorísticos. Mas isso é outro capítulo.

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