São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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`Zero' ganha batalha contra a mesmice

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"O trem, para mim, ia em direção à minha flor, que me colheria, me acolhendo em seu ventre de vento, acariciando meu rosto com as pétalas colhidas durante uma viagem que, com certeza e orgulho, eu fiz."
A plasticidade do trecho acima aparece em vários momentos de "Zero – Histórias e Pernilongos", livro de estréia do paulistano Carlos Eduardo Magahães, 26. Dentre outras qualidades, ela permite afirmar de cara, sem hesitação: eis um autor que promete muito.
Seus 17 contos nasceram de um desafio: retratar dramas e feitos cotidianos –o envelhecimento das pessoas, um fatal acidente de trânsito, uma amizade, o abandono, temores dentro e fora da família, no campo e na cidade- sem cair na pieguice. Eles são, pois, uma opção pela corda bamba.
Os únicos momentos em que se resvala para um sentimentalismo juvenil, cristão-militante até, estão no conto "O Velho", feito de pequeninas histórias de mulheres e homens idosos já sem o domínio do próprio corpo.
Nos demais o sentimento de culpa, se houver, virá por conta do próprio leitor, a quem Magalhães conduz com destreza e polidez para uma espécie de amplo descampado, onde personagens-narradores, revezando-se, experimentam os perigos e desilusões da infância ("Cinco Estrelas"), os remorsos da ambição ("Tereza e o Jaguar"), a liberdade fugidia de uma escapada ("Viajando de Trem"), ou a serena frequentação com a morte ("Zero", que empresta seu título ao livro).
Magalhães sabe que o desgaste de seus temas impõe, para que a obra dê certo, um combate à mesmice –e sai vitorioso nesse duelo. Ele consegue polir o texto, economiza advérbios e não permite sobras. Sem se deixar amordaçar pelo prosaísmo padronizado ou inodoro de uma crônica impessoal, não apela, porém, para qualquer experimentalismo infundado.
O que prevalece no seu estilo, então, é uma simplicidade franca e original, através da qual Magalhães mostra para o leitor, como em "Primeiro de Abril", sinis claros de como atuam os poderes do Sonho, que revela enquanto deforma e assusta enquanto adverte; ou, caso de "Você, um Tempo", as armadilhas do Presente, que devora, mas repõe e aprimora mas aniquila.
"A vida velha; a morte com vontade de nascer", diz o narrador de "Ué". Sua música, por assim dizer, provém dos "quartetos de nervos" de que um dia falou Clarice Lispector (1925-1977) com a sensibilidade de quem soube virar-se inteira pelo avesso. É portanto de Vida que se trata em "Zero", numa grata surpresa para o leitor.
PS: Este resenhista não conseguiu encontrar, se é que ela existe, qualquer relação entre este livro e o romance "Zero", de Ignácio de Loyola Brandão.

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