São Paulo, segunda-feira, 23 de maio de 1994
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Romenos descobrem humor na carnificina

"Titus Andonicus" prova que tragédia é entretenimento

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Com "Titus Andronicus" começou, afinal, o Festival Internacional de Artes Cênicas. A grandiosidade da produção, o empenho do elenco, a inovação cênica, sobretudo a humanidade do espetáculo, que desafia e envolve o público, trouxeram o que vinha faltando, desde o início, à mostra de teatro do festival.
Não que "Titus Andronicus" seja perfeita. Dividida em duas partes, com intervalo, ela chega perto do tédio, na primeira –quando passa por cima, dispensa as cenas de assassinato e grand guignol feitas por Shakespeare, nesta que é a primeira das tragédias, talvez a primeira das peças todas, que ele criou.
Todo o horror, na primeira divisão da montagem, acontece fora de cena e distante do olhar do público, daí o enfado. O espectador recebe o lamento, o amargor, o desespero dos demais personagens, enquanto filha e filhos e outros vão sendo estuprados, vão tendo braços cortados, vão morrendo –mas fora de cena.
Para acentuar o tédio, tal lamento é seguido por uma arenga que não tem fim, um ruído monocórdio –bastante comum em algumas produções supostamente experimentais da última década– que amplia a impressão de que o diretor romeno Silviu Purcarete visava aí, antes abafar, do que abrir caminho a Shakespeare.
As interpretações até então –quando termina a primeira metade– seguem na mesma linha, mal se podendo perceber, em meio à choradeira de Titus, o grande ator que é Stefan Iordache, ou então, em Aaron, a imagem perfeita para o trágico.
Em tempo, Titus Andronicus é um general romano que, de volta da luta contra os godos, determina a morte de um filho da Tamora, a rainha que conseguiu capturar. Mas Tamora é libertada e, com o amante, Aaron, o mouro, obtém uma vingança horrorosa, que inclui estuprar e cortar os braços e a língua da filha de Titus, sacrificar outros filhos dele, até decepar um braço do próprio Titus. Na segunda metade, Titus e o que sobrou de sua família vingam-se, de forma semelhante, de Tamora, dos dois filhos dela e do mouro.
A segunda metade da montagem é a vingança de Titus, agora com todas as mortes em cena, com um humor desbragado, com liberdade, com alegria até. Afinal, Shakespeare sabia bem –assim como o diretor Peter Brook sabia, quando buscou "Titus" do exílio de quatro séculos, em 1955– que tragédia é entretenimento.
E entretenimento foi o que o elenco do Teatrul National Craiova deu ao público, da metade da tragédia para a frente. Os momentos cômicos, muitos, serviram para sublinhar os trágicos. Aaron, assim, cresceu em cena, entre ridículo, palhaço e, cada vez mais, trágico –na imagem que a peça traça da tragédia.
Para além das atuações e da edição do texto, "Titus Andronicus" mostrou qualidades, sobretudo, na sua cenografia. Sem nada do excesso financeiro que se costuma vincular à idéia de uma superprodução, a montagem provoca um maravilhamento de superprodução –com pouco mais do que as luzes e grandes panos.
Foram eles que permitiram humanizar um palco geralmente frio, como é o do Sérgio Cardoso. Fecharam um ambiente próprio, em que as imagens refletidas nos panos, quando não as grandes cores dominando tudo –no vermelho, por exemplo–, quando não as sombras sempre mágicas, faziam as vezes da cenografia habitual.
As formas projetadas, como faz Robert Lepage. As telas de televisão, como gostam Elizabeth LeCompte e Peter Sellars. Até mesmo a política por tema, como quer Declan Donnellan. "Titus", uma montagem sobre o horror de hoje nos Balcãs, segundo o diretor Silviu Purcarete, trouxe o teatro de hoje, para o Brasil.

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