São Paulo, terça-feira, 24 de maio de 1994
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Canadense revoluciona curtas-metragens

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

Para quem temia pela sobrevivência do curta-metragem como gênero artístico, não há melhor notícia recente do que o filme "32 Curtas sobre Glenn Gould", do canadense François Girard.
Ele está sendo considerado uma pequena revolução na linguagem cinematográfica. Por causa das suas inovações semânticas, vem obtendo inesperado êxito nos EUA, em particular entre intelectuais.
A fita trata de assunto de interesse reduzido a fãs ou musicólogos, a vida do pianista também canadense Glenn Gould (1932-1982), considerado um dos principais intérpretes de Johann Sebastian Bach da história.
Gould foi um artista excêntrico. Aprendeu a ler música antes de palavras, já compunha aos cinco anos. Hipocondríaco, reclusivo, abandonou as apresentações ao vivo aos 31 anos em nome de discutida teoria moral.
Ele achava que os recitais em auditórios são injustos por natureza e impedem a perfeição da música.
Há espectadores que se sentam em locais ruins, outros têm problemas de audição, todos são perturbados pela tosse e movimentos alheios, por mais educada que seja a platéia.
Por isso, em nome da máxima perfeição possível para todos os ouvintes, ele resolveu apenas gravar, o que fazia de maneira obsessiva, repetindo cada movimento até conseguir a melhor interpretação de que era capaz.
Para filmar esse talentoso músico, o único a ter seu trabalho escolhido para compor o conjunto de obras humanas enviadas ao espaço pela Nasa como prova da existência de vida inteligente na Terra, Girad resolveu fazer um filme em que ele ou qualquer outro jamais aparecesse tocando piano.
A música de Gould está presente o tempo inteiro como fundo. O piano é mostrado por dentro (a câmera acompanha todos os movimentos internos do instrumento durante uma peça), o pianista também (pelo raio-X de um intérprete enquanto toca), mas os dois juntos jamais.
Os 32 curtas vão de 45 segundos a 12 minutos de duração cada. Incluem depoimentos de amigos, parentes, colegas de Gould, representações de episódios de sua vida (ele é interpretado –bem– pelo ator Colm Feore), leitura de textos ou programas de rádio de sua autoria.
Muitos engraçados, alguns dramáticos, todos inteligentes, os 32 curtas mostram as manias de Gould com numerologia (ele temia morrer aos 49 anos porque a soma dos algarismos dos números é igual a 13; ele morreu dias depois de completar 50 anos), remédios, solidão, frio, neve e, claro, música.
Um dos curtas não é de Girard: chama-se "Esferas" e foi feito em 1969 por outro grande artista candadense, o animador Norman McLaren, sobre música de Gould.
O número de curtas pode ter sido derivado das "Variações de Goldberg" (30 para 2 cravos), compostas por Bach para o conde Keyserling, que solicitou ao compositor que lhe produzisse música para combater a insônia.
Também pode ter sido uma homenagem a Beethoven, que compôs 32 sonatas para piano. Gould foi excepcional intérprete dos dois grupos de trabalhos.
Mas também é muito possível que tenha sido mera obra do acaso. Girard até agora não explicou se existe alguma lógica por trás do número.

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