São Paulo, quinta-feira, 26 de maio de 1994
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Lei X Justiça

HÉLIO SCHWARTSMAN

O conflito entre a lei e a justiça –entre o legal e o legítimo– sempre esteve entre as preocupações humanas. As grandes tragédias gregas, por exemplo, nada mais são do que a expressão desse conflito. Édipo transgrediu a lei ao matar o pai, Laio, e ao deitar-se com sua mãe, Jocasta. Ainda que não tivesse a menor idéia do que estivesse fazendo, era culpado e foi punido. Acabou arrancando os próprios olhos. É justo? Parece claro que não. Mas a lei é a lei, e é a sua transgressão, ainda que inconsciente, que transforma Édipo num herói, em alguém de certa forma superior a seus semelhantes por ter sofrido injustamente.
Tem-se daí que mesmo as primeiras comunidades humanas –a lenda de Édipo é mencionada em Homero, remontando, provavelmente, a uma tradição oral pré-histórica–, já intuíam a noção da necessidade de uma lei –humana ou divina– que fosse capaz de manter a ordem, ainda que, por vezes, cometesse injustiças. Ainda na Grécia, pode-se mencionar o caso do grande filósofo Sócrates, que, condenado injustamente à morte, recusa-se a fugir da prisão –todo o esquema havia sido acertado por seus amigos– porque considerava que a lei deveria ser cumprida.
É claro que também existem os que procuraram valorizar mais a noção de justiça, mesmo que em detrimento da lei. Santo Tomás de Aquino, o Divino Doutor, por exemplo, reconhecia o direito dos povos à rebelião.
Thomas Hobbes, numa espécie de meio-termo, acreditava que os homens deviam obediência absoluta ao soberano (a lei), desde que sua própria vida não fosse colocada em risco.
Nas democracias modernas o conflito permanece. Embora a idéia geral seja embasar as leis numa certa e vaga idéia de justiça –venha ela de onde vier– e de funcionalidade da sociedade, existem muitas leis que podem ser consideradas injustas ou mesmo tolas.
Sempre haverá aqueles que, com razão, não compreenderão o sentido de o legislador perder seu tempo determinando a altura correta que deve ter o rodapé de um boteco. Da mesma forma, parece não haver nenhum sentido em proibir os sindicatos de colocar seus carros de som à disposição de candidatos. Diga-se, de passagem, que pedir a impugnação da candidatura de Lula por ter transgredido essa norma é desproporcional; seria como pedir a pena capital para quem estacionar seu carro em lugar proibido.
Ainda assim, a declaração de Lula de que prefere o justo ao legal causa profunda preocupação. É claro que se deve perseguir, sempre, um certo ideal de justiça. É igualmente óbvio que as leis que pareçam injustas podem e devem ser alteradas. O que não se pode admitir, uma vez que ninguém –ninguém mesmo, seja a classe trabalhadora, a igreja, o professor de direito, Platão ou Kant– detém o monopólio de saber a priori o que é ou não justo, é que o candidato se coloque, em nome dessa justiça que ele não conhece, acima da lei.
A humanidade levou milhares de anos para desenvolver o sistema político democrático. Não é o ideal, é claro, mas é o que de melhor os homens experimentaram até hoje. E a base da democracia, não custa sempre repetir, é o Estado de Direito, ou seja, a obediência irrestrita à lei, seja ela qual for, uma intuição que mesmo povos pré-históricos já possuíam. Qualquer manifestação em sentido contrário evoca os piores momentos que a humanidade já conheceu, aqueles em que um determinado grupo achava que poderia impor a sua idéia de justiça a todos. É o que ocorreu no nazismo, no comunismo real, na Inquisição e todas as demais tiranias de que a humanidade já padeceu.

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