São Paulo, domingo, 29 de maio de 1994
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O vagabundo e os usurários

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma campanha de publicidade recentemente veiculada por certa grande instituição financeira trouxe-me à lembrança um ensaio de T.S. Eliot lido há muitos anos atrás.
Esse ensaio focalizava o problema da função social da poesia. Não em termos de engajamento ideológico, tal como costumava ser então focalizado, mas antes em termos de engajamento eminentemente artístico. Sublinhava Eliot que, mais do que quebrar lanças em favor desta ou daquela crença, cabe ao poeta a suprema missão de zelar pela expressividade da língua que usa como seu instrumento de trabalho.
Isto porque a saúde dos idiomas é minada a todo momento pelos desmandos de corruptores que, tanto por ignorância como por má-fé, aviltam-lhe os recursos de expressão ao se aproveitarem deles para fins subalternos.
O discurso eleitoreiro, o editorial da imprensa mais ou menos amarela e, "the last but not the least", a maior parte dos textos de publicidade, fornecem um bom mostruário da variedade e extensão dessa empresa corruptora. Por culpa dela, ainda que não se perca de todo, o poder de significação das palavras se banaliza em lugar-comum ou se degrada em papo furado.
Mas é bem de ver que a corrupção das significações não se restringe apenas ao domínio da palavra escrita ou falada. Por força dos recursos visuais hoje tão amplamente explorados pela mídia, ela atinge de igual modo o domínio das significações imagéticas.
Nunca me esqueci (caso-limite em que o mau gosto raiava pela impiedade) de um comercial de desodorante exibido há cerca de uma década atrás. Punha ele em cena uma veloz sucessão de imagens cujo centro de interesse eram as axilas. Imagens de obras famosas, de escultura e pintura, entre elas o quadro de um Cristo na cruz: a câmera esmerava-se em mostrar a cabeça do crucificado tombada para o lado esquerdo, a fim de nela detalhar o nariz próximo da axila...
Poderia haver exemplo mais radical de mau gosto e aviltamento simbólico do que essa safada utilização da imagem do Deus-homem para vender desodorante? Felizmente, a campanha publicitária que serve de ponto de partida para as presentes considerações não chega a tais extremos. Em vez de recorrer a uma imagem sagrada, contenta-se com uma imagem profana, cuja expressividade simbólica nem por isso deixa de degradar grosseiramente.
Ao se apropriar, com a maior sem-cerimônia, da figura do vagabundo Carlitos para a vincular a planos de poupança que forceja por impingir nos consumidores, o comercial da grande instituição financeira comete um duplo delito, ético e estético.
Ainda que, no caso de pequenos investidores, a poupança bancária seja um meio legítimo de proteger da inflação economias feitas à custa de muito suor, o mesmo álibi se caracteriza de imediato como ato de usura pura e simples, da mesma usura sob cuja mágica de dinheiro produzindo mais dinheiro se embuçam, em mau disfarce, as manobras expoliadoras do capital.
E é precisamente contra as engrenagens desumanizadoras do capital que Carlitos luta com bravura em "Tempos Modernos", donde ser no mínimo uma abominação fazer dele um chamariz publicitário dessas mesmas engrenagens. É minar pela base tudo aquilo que, nas suas agilíssimas estrepulias contra os agentes da ordem e os donos da vida, a figura do pequeno vagabundo inventada pela genialidade de Chaplin simboliza até hoje.
Com os seu sapatos cambaios, com a cartola e a sua bengalinha de dândi das sarjetas, Carlitos deu inesquecíveis lições de como sobreviver com delicadeza, desambição, independência, compaixão e ternura humana numa ordem social onde não há lugar para tais sentimentos. A corrida de ratos que a todos nos arrasta, corrida na qual a única lei é tirar a maior vantagem para si e que os outros se danem, não pode tolerar nem consentir sentimentos dessa espécie.
Não é de crer que os promotores da campanha publicitária se tivessem dado conta de tais implicações quando a idearam e veicularam. Possivelmente tinham em mente tão-só valer-se de um velho recurso da propaganda, qual seja de associar o produto a ser vendido com a imagem de uma figura bem conhecida do público e dela estimada, ainda que entre um e outro não haja nenhuma ligação natural.
A simples proximidade é quanto basta para que o produto se beneficie da aura de prestígio da figura a ele arbitrariamente associada. É fácil ver que se trata de um caso patente de usurpação de valores e, como tal, de degradação simbólica.
Se bem pouquíssimo prezada num mundo que o rolo compressor da indústria cultural reduziu à mais chata das planícies, a poesia ainda forceia por devolver significação e dignidade às palavras e às imagens, tão corrompidas pelos que, em nome do lucro, dela se servem para iludir e enganar. Sem apurar a sensibilidade e a consciência do leitor, ela o convida a distinguir, a separar o joio do trigo no campo dos valores éticos e estéticos.
Daí que, para remate destas considerações, nada seja mais a propositado do que contrapor, a deturpação publicitária do simbólico de Carlitos, o encarecimento lírico que dela faz Carlos Drumond de Andrade em "Canto ao homem do povo Charlie Chaplin". Um inesquecível poema que diz a certa altura: "apenas sempre entretanto tu mesmo, / o que não está de acordo e é meigo, / o incapaz de propriedade, o pé / errante, a estrada / fugindo, o amigo / que desejaríamos reter / na chuva, no espelho, na memória / e todavia perdemos, e que assim termina: "o Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e de esperança."

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