São Paulo, domingo, 29 de maio de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O teatro de Millôr na contramão do tempo

A L&PM lança o primeiro volume do "Teatro Completo" do autor

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Nada menos do que 100 obras constam do "Teatro Completo" de Millôr Fernandes, que a editora L&PM começa a publicar. Das peças originais às traduções, é uma vida no teatro. Tem de tudo, de um "Hamlet" genial, o maior, com achados poéticos únicos, à colagem impagável de "O Homem do Princípio ao Fim", num estilo próximo às suas criações em revistas como "Veja" e "O Cruzeiro".
O primeiro volume, que acaba de sair, concentra-se no dramaturgo original, apresentado por três peças bem distintas como são "Pigmaleoa", escrita "antes do verão" de 1955, "É...", um dos sucessos de Millôr, representada pela primeira vez em 1977, com Fernanda Montenegro, e "A Història é uma Istória", colagem que estreou em 1976 e foi atualizada pelo autor no ano passado.
Millôr Fernandes não pára. Há pouco estreava "Gilda", tradução sua para Noel Coward, com Fernanda Montenegro. Aos 70 anos, trabalha como sempre. E, como sempre, com um olho no passado, com saudades do Rio de Janeiro, do Brasil, do homem. Avesso ao seu tempo, sempre. Um conservador, como já quiseram rotular. Um libertário saudosista, talvez. Ou, como aparece em "A História é uma Istória":
"(...) Num certo momento percebi que a história ia indo mais depressa do que eu. Eu ainda estava na primeira Guerra Mundial quando estourou a segunda. (...) Quando alcancei a Coréia, a história já estava se retirando do Vietnã e os japoneses já vendiam carros pros americanos. É, na minha idade não dá mais para acompanhar. (...) Confesso que ainda não entendi nem a queda do muro de Berlim."
Na virada dos anos 50 para os 60, Millôr Fernandes já era citado por Décio de Almeida Prado como autor de uma antiga geração. De uma geração –como escreveu, algo entristecido, o próprio Millôr– que surgiu antes do "espantoso verão de 1955", quer dizer, antes de Vinicius de Morais, de Tom Jobim, da bossa Nova. foi quando escreveu "Pigmaleoa", a comédia que abre este Teatro Completo.
O texto acaba de receber nova montagem com Glória Menezes, no teatro Procópio Ferreira, em São Paulo. É pura saudade, a peça. Saudade de um Rio que, já então, 40 anos atrás, sofria com o crescimento moderno, que derrubou casas para erguer edifícios e matou Copacabana. Millôr, como num presságio, viu o que começava a acontecer. O que só seria contido por mágica, com fez Ismênia, a "Pigmaleoa":
"Meus amigos, sem querer ser importante, este é o fim de uma era... Gostaria de possuir uma força mágica que me desse o poder de fazer as coisas voltarem atrás... (Com raiva.) Gostaria que cada gesto meu pudesse fazer vir abaixo um desses monstros de cimento armado. (Acompanha a fala com o gesto em direção a um edifício. Ouve-se o terrível estrondo de um edifício que desaba.)"
O autor não gosta nada de "Pigmaleoa", ou pelo menos não gostava quando escreveu sobre a peça, dez anos depois, em texto que é reproduzido como um prefácio, no Teatro Completo. Diz ele que a peça foi escrita para uma "platéia alienada". ("Eu disse alienada? –queria dizer burra.") O que o desagradava mais era tudo ser exposto do ponto de Ismênia, ricaça decadente e colunista social.
Mas então, em 1965, o democrata e anticomunista Millôr Fernandes enfrentava a duras penas os novos tempos, sempre atrasado. Entrou pelos anos 70 da mesma maneira, às rusgas com a revolução dos costumes, como bem mostra "É... " –um grande sucesso já na primeira montagem, com Fernando Torres e Fernanda Montenegro, que foi a atriz mais identificada com Millôr Fernandes, por quatro décadas.
Mais à vontade com os personagens, universitários e não a burguesia decadente de "Pigmaleoa", ele escreveu uma peça completa, em que entram em conflito a estrutura familiar conservadora e as idéias feministas de igualdade etc. É uma tragicomédia, guiada ou narrada por um dos personagens, a dona-de-casa que perde o marido, acompanha a desestruturação geral e termina com um tragicômico "É!..."
Novamente a saudade, o conservadorismo prevalece. como no lamento de Mário, o professor cinquentão: "O que acontece é que a família caiu em desgraça. Agora é preciso ter muita coragem para defender a idéia de que cumprir obrigações com os que nos cercam é um ato criativo e apaixonante. Todos nos dizem que, para sermos liberados, temos que evitar o próximo e sobretudo... não lavar a louça."
Por fim –depois de piadas várias contra o discurso politicamente correto, muito antes de isso ser moda– Mário cai por Ludmila, a feminista, mas os dois acabam reproduzindo uma família tradicional. Nada muda e o resultado é uma dona-de-casa solitária e um namorado, de Ludmila, que se suicida. "É!...", dizia Fernanda Montenegro, "dramática e cômica na mesma palavra", pela indicação.
Millôr Fernandes, o autor de teatro, é assim, como que um velho sábio, atrasado no tempo, mas adiantado na compreensão. Um autor maior que apenas começa a ser estabelecido, no "Teatro Completo".

Texto Anterior: LANÇAMENTOS
Próximo Texto: A história literária como guerra santa edipiana
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.