São Paulo, segunda-feira, 30 de maio de 1994
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Realidades chocantes

FLORESTAN FERNANDES

Alguns dos meus melhores amigos e dos parlamentares que cheguei a admirar mais na Constituinte, na Câmara dos Deputados, em suas comissões e no Congresso Nacional pertencem ao PSDB. Foi com simpatia que escrevi sobre o partido, quando ele surgiu na cena política. Encarava-o como uma força de centro na esquerda autêntica. Não me passaram pela cabeça as vicissitudes dos "partidos".
O PSD precisava do S, para incluir o "social" em sua identidade e confrontar-se com o PTB. O PDS já não tinha essa legitimidade –o S equivalia a um ardil tolo. O PSDB parecia um partido de socialismo reformista, que mobilizaria extensa parte da classe média em fins construtivos na transformação da sociedade, atraindo também setores expressivos da "intelligentsia".
O castelo de cartas ruiu logo. Há uma esquerda reformista no PSDB. Mas ela parece ser mera exceção. Agora, o partido retirou a máscara. Mostrou que a maioria dos seus políticos profissionais –cuja respeitabilidade não pode ser posta em dúvida– oscilava entre o centro nacionalista e os radicais do PMDB. Considerados globalmente, não faziam diferença. Eram o retrato do coração e do cérebro deste partido. Nada mais!
O tancredismo concedeu ao seu principal teórico, professor e senador Fernando Henrique Cardoso, a oportunidade de esboçar a filosofia política do mudancismo. Na prática, os que iriam constituir o cerne e a base do partido iam mais longe: condenavam o autoritarismo, o oportunismo, o clientelismo e o fisiologismo. Ostentavam um patamar aparentemente sólido, que evidenciava a radicalidade dos estratos médios e dos intelectuais envolvidos na rejeição do "status quo".
As figuras políticas que davam vida a essa tendência do PSDB honravam seus compromissos. A própria ruptura definitiva com o PMDB continha coerência com tais compromissos. Projetava-os em um horizonte mais fundo e estimulante na atividade parlamentar. Tinham de curvar-se às circunstâncias imperantes no Legislativo e no meio social.
A política é a "arte do possível", uma regra dura, que cortou muitas esperanças e justificou numerosas concessões, mesmo na esquerda vertebrada e intransigente. Não se poderia cobrar do PSDB algo que nivelava por baixo o produto coletivo das negociações entre partidos, bancadas, lideranças, lobbies e governo.
Neste instante, encontramo-nos em face de uma mutação provocativa. O PSDB pôs a luta pelo poder acima de tudo. Negou-se a si próprio e tripudiou sobre o significado histórico que adquirira. Tornou-se, sob o governo Itamar Franco, o partido da ordem, o mais firme, ousado e ambicioso. E, pior que isso, rebaixou-se ao nível de tudo que renegara –o autoritarismo, o oportunismo, o clientelismo e o fisiologismo. Converteu-se, de um salto, ao aventureirismo extremo, aliando-se à ultradireita e consentindo receber intromissões extravagantes. Dizem que "Deus escreve direito por linhas tortas". Como confiar no brocardo, se o arcaico moderniza-se no presente e ameaça o futuro do país?

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