São Paulo, quinta-feira, 2 de junho de 1994
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Mito do faroeste sustenta "Tombstone"

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: Tombstone
Produção: EUA, 1993
Direção: George Pan Cosmatos
Elenco: Kurt Russell, Val Kilmer, Dana Delaney
Onde: a partir de hoje nos cines Marabá, Gazeta, West Plaza 3, Eldorado 2, Center Norte 1

Tombstone, Arizona, não é só uma cidade. É um desses lugares que ocupam a fantasia de qualquer fã de cinema, pelo menos desde que John Ford filmou o encontro de Wyatt Earp com Doc Holliday e seu duelo contra os Clanton em O.K. Corral, em "Paixão de Fortes" (1946).
É covardia comparar um trabalho de Ford e um de George Pan Cosmatos, o realizador de "Cobra". No primeiro, toda a inteligência vem de Ford, de sua capacidade de estar acima e adiante da indústria. As virtudes de "Tombstone", ao contrário, são da indústria, muito mais que do realizador.
Tomemos o Wyatt Earp mostrado em "Tombstone". É um homem desiludido com a lei, sem outro objetivo que não o de ganhar dinheiro, e pessoalmente infeliz. O Wyatt descrito no filme dirigido por George Pan Cosmatos é um individualista, sem dúvida, mas não possui o sentido de comunidade dos heróis do faroeste clássico.
Esse individualismo sem freios, que dispensa caráter, refere-se ao homem dos anos 90 (século 20). Nada a ver com o sujeito disposto a criar raízes dos anos 40 e 50.
Em "Tombstone", o dinheiro é o móvel essencial da vida de Earp. Além dele, o que conta é o núcleo familiar (traço comum a todos os filmes sobre o célebre xerife).
Também os bandidos não constituem uma simples gangue. São uma verdadeira organização criminal, que se faz identificar pelos lenços vermelhos de seus integrantes, sinal distintivo similar ao das gangues de rua contemporâneas.
Essa sintonia com o presente, clara, não descarta a influência de "Os Imperdoáveis". Exemplo básico: Earp é, assim como o Clint Eastwood de "Os Imperdoáveis", um tipo sem eira nem beira.
Menos interessante, Doc Holliday (Val Kilmer) aqui perde feio na comparação para o tipo complexo, angustiado e autodestrutivo criado por John Ford: é o jogador tísico, invariavelmente simpático, deslocado, quase afável. Mas uma personalidade singela.
A caracterização dos bandidos é o ponto mais fraco do filme, no setor roteiro. Eles são tão abundantes e característicos que nenhum chega a se impor como vilão. Sequer há quem faça sombra ao Gene Hackman de "Os Imperdoáveis".
Aqui começam também os problemas cinematográficos do filme: o espectador até se perde na profusão de bigodes e na multiplicação de bandidos. A narrativa é quadrada. Cosmatos não imprime um olhar próprio às coisas. Na falta do que dizer, em certas horas providencia um pôr-do-sol amarelinho, flagelo dos faroestes recentes.
Mas boa parte do tempo Cosmatos preserva as virtudes da história que conta. Elas existem, apesar de alguns diálogos óbvios e de outros tantos pernósticos. Mas a capacidade de criar um clima pela força da imagem lhe escapa em momentos críticos (exemplo: o duelo em O.K. Corral é muito frouxo).
"Tombstone" resiste mesmo à confusão de linhas, aos personagens que se perdem ao longo da ação, às incertezas de um olhar sem personalidade própria.
É um bom sinal: apesar de todos os equívocos, a inteligência do gênero supera os infortúnios da realização.
"Tombstone" é visível apesar da copiagem indecente e de suas fraquezas. Em alguns momentos, chega até a surpreender –como na primeira partida de cartas de Doc Holliday– e mostrar um bom sentido de "clima".
Em suma, Wyatt Earp, o legendário xerife, sobrevive a Cosmatos. Não é tudo, mas é bem mais do que nada.

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