São Paulo, sexta-feira, 3 de junho de 1994
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Ao irmão "mulatinho"

FERNANDO CONCEIÇÃO

Ao irmão"mulatinho"
Foi Gilberto Freyre quem colocou a coisa preta no seu devido lugar. Era um tempo em que no Brasil ter origem negra, na senzala, significava mesmo ter "um pé na cozinha", e ninguém queria isto. O antropólogo pernambucano estabeleceu que todos os brasileiros trazem, se não no corpo, o sangue do negro na cultura e na alma.
Esta idéia, de um ideólogo tido como conservador, permanece revolucionária. Não por outra razão repercutem as declarações eleitoreiras de Fernando Henrique Cardoso, assumindo-se como mestiço de origem negra, "um mulatinho com um pé na cozinha".
Ainda que possamos lamentar as circunstâncias em que a revelação acontece –FHC busca popularizar sua candidatura–, podemos a partir dela propor uma reflexão sobre a imagem do negro na sociedade brasileira em contraponto às candidaturas presidenciais.
Na campanha de 89, Lula esteve num debate em Salvador e, questionado sobre suas origens negras, negou peremptoriamente a verdade que seu fenótipo denuncia. De Brizola, sabemos que seu partido há tempos estimula o debate da problemática racial. Quércia, este nunca se referiu ao tema, assim como os demais candidatos. Essa discussão não está na pauta de prioridades de nenhum partido, de direita, centro ou esquerda.
Setores do movimento negro se apressam em sublinhar a recorrência pejorativa do termo "mulato" e da expressão "pé na cozinha". Em defesa de FHC, é bom lembrar que também ele sofre os efeitos da ideologia da democracia racial brasileira, que tem como um de seus pressupostos o "embranquecimento" das idéias, do comportamento e da pele.
Por esses pressupostos, o mulato (que os dados oficiais chamam de "pardos") estão numa categoria superior na escala civilizatória e, ainda que a expressão seja condenável, por advir de mula, trata-se de terminologia assimilada por grande parte dos mestiços que almejam se distanciar de sua condição de negro. Ter o "pé na cozinha" nada mais é que viver uma situação de subalternidade.
Fernando Henrique iniciou sua carreira auxiliando pesquisa sobre relações de brancos e negros em São Paulo. Sua qualificação de pós-graduando é também sobre o tema. Portanto, sabe do que está falando.
A infelicidade é constatar que seja preciso uma campanha eleitoral para que um expoente das elites intelectuais tenha um banzo negróide. Mas ao ser tomado por súbita consciência de sua origem, para além dos interesses de voto, FHC contribui no debate sobre a problemática racial brasileira.

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