São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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'Plano vai criar país de quarta categoria'

VINICIUS TORRES FREIRE; FERNANDO DE BARROS E SILVA
DA REPORTAGEM LOCAL

Fernando Henrique Cardoso é o autor do plano econômico mais conservador dos últimos 50 anos e o petismo de Lula tem para o país um programa inviável de redistribuição da pobreza.
Quem fala é o economista João Manuel Cardoso de Mello, 52, professor-titular da Universidade Estadual de Campinas.
Ao lado de Luciano Coutinho e Luiz Gonzaga de Mello Belluzo, ele coordena o programa econômico de Orestes Quércia, candidato do PMDB à Presidência.
Autor de um livro importante de revisão das teorias da formação do capitalismo brasileiro ("Capitalismo Tardio"), ex-assessor do ministro João Sayad na época do fracassado Plano Cruzado, João Manuel tem trânsito entre intelectuais de esquerda. Mesmo sendo um estridente ideólogo do quercismo.
Irônico e bem-humorado, ele pega o bonde do debate acadêmico sobre a sucessão distribuindo bofetadas em tucanos e petistas.
Sustenta que seus pares têm protagonizado uma discussão pobre sobre as alternativas do país e diz que todos estão presos ao que há de pior na palavra ideologia.
O diagnóstico de João Manuel da situação brasileira é quase lúgubre. Os investimentos internacionais se reconcentraram nas economias mais ricas, processo que ainda deve durar duas décadas, e a capacidade do país e do Estado de atrair esses recursos está destruída.
O economista, porém, acha que há saídas através de projetos setoriais, elaborados por especialistas com apoio de um Presidente forte e com capacidade administrativa.

Folha - O que significaria a vitória de Lula, FHC ou de Quércia para a economia do país?
João Manuel Cardoso de Mello - O debate brasileiro é ideologizado, no pior sentido da palavra. Gira em torno de falsos dilemas. Estado ou mercado, por exemplo. Isso é uma bobagem. Qualquer país que se preze faz uma combinação dos dois. Estamos nessa bobagem há muito tempo.
Folha - Desde quando?
João Manuel - Desde 1987. A eleição é um momento decisivo desse debate, evidentemente. E qual é o quadro atual? O plano do Fernando Henrique. É um plano de dolarização. Se você quiser olhar os resultados disso, olhe para a Argentina ou México. Teremos preços de Nova York e salários de Uganda, taxas de juros estratosféricas, que inibem investimentos, e desindustrialização. É estranho que o Fernando diga agora "fiz a estabilização e depois vou fazer o crescimento". Isso é uma empulhação. E o problema desse PT é o redistributivismo sem fundamento.
Folha - Qual a pior opção eleitoral, na sua opinião?
João Manuel - O PSDB. Esse plano FHC é a coisa mais conservadora que foi feita aqui desde o governo Dutra (1946-51).
Folha - Mais conservador que o de Roberto Campos (ministro da Fazenda do governo Castelo Branco, 1964-67)?
João Manuel - Sem dúvida. Ele reestruturou o país para retomar o crescimento. Fez um arrocho muito menor que o de agora. Menor do que virá em julho, com o expurgo de metade da inflação. E a inflação não vai acabar, como qualquer pessoa sensata sabe.
Folha - E o PT?
João Manuel - O PT tem quadros? O PT tem condições de fazer uma política de entendimento com o setor privado? O PT tem uma política de retomada do fluxo de investimentos externos? Tem? Se não tiver, não faz política social nenhuma. Isso é que demarca as alternativas. Existe a alternativa ultraconservadora, o plano FHC. O PT é um redistributivismo sem capacidade de estabelecer os pré-requisitos do desenvolvimento. Folha - O sr. acredita, como dizem defensores de FHC, como o filósofo José Arthur Giannotti, que na Presidência ele conseguiria neutralizar o PFL?
João Manuel - O problema é o sistema de forças que o apóiam. Vou acreditar que um iluminado vai romper com os compromissos que ele fez? Teria que pegar tudo que aprendi na faculdade, que eles me ensinaram, o Giannotti e o Fernando, e jogar no lixo. Vou acreditar em um demiurgo, que vai usar a direita? Francamente.
Folha - E como retomar o crescimento?
João Manuel - Primeiro precisa ter projeto. Não essa conversa de projeto nacional. Não temos projetos de infra-estrutura. Antigamente você ia ao Ministério dos Transportes, abria uma gaveta e estava tudo lá. O Estado tinha a capacidade de fazer projetos e ter uma programação a longo prazo.
Folha - Como assim?
João Manuel - Vou dar um exemplo bem prosaico. A Coréia exporta US$ 1 bilhão em móveis por ano. Compra a madeira no Brasil. Ainda não apareceu um desgraçado aqui para montar um pólo moveleiro. É simples assim. Folha - Como financiar a infra-estrutura?
João Manuel - No caso do cerrado, o governo japonês tem um interesse grande. O governo americano não nos dará um tostão –nós concorreríamos com eles. Mas o Japão quer montar uma fonte firme de alimentos. Porém é preciso um outro estilo de política econômica. Folha - A sua ênfase nos detalhes não é um exagero retórico? O sr. não está deixando os problemas estruturais de lado?
João Manuel - Não, não. Desde que saí do governo estou dizendo que a única saída é essa. Não há saídas grandiloquentes. Temos que voltar à tradição que se implantou com Getúlio Vargas, que começou a montar o aparelho de Estado para poder operar isso. A solução global é uma soma de soluções parciais. Claro, existe uma situação internacional adversa. A lógica da crise internacional é a lógica da regressão econômica.
Folha - O que o sr. chama de curso natural é a integração no consenso de Washington?
João Manuel - É isso, esse plano. Mas nós não podemos comprar esse peixe podre, o ultraliberalismo. Desindustrializar, desempregar, cortar salários, é isso que eles estão fazendo: criar um país de quarta categoria. O Fernando diz: você encolhe, mas depois vai. Vai nada. Tem que ter políticas ativas para superar o liberalismo.
Folha - Há capacidade interna de receber investimentos?
João Manuel - A capacidade de coordenação do Estado foi completamente destruída. Se você não tem o mínimo de política nacional para enfrentar essa crise você está desgraçado. A política possível é ir articulando projetos específicos.
Folha - Mas como trazer de volta os investimentos externos?
João Manuel - A legislação do capital estrangeiro no Brasil é uma legislação generosa. Não precisa mudar. Mas faltam projetos para negociar, em um momento de grande liquidez do mercado intenacional de crédito. Estão girando no mundo US$ 3 trilhões por dia.
Folha - Não é preciso nenhuma grande reforma estrutural? Privatizações por exemplo?
João Manuel - Você pode até privatizar, mas por outras razões. Tem que ter novos projetos de investimento e para cada projeto articular uma solução financeira.
Folha - E o preconceito dos intelectuais em relação ao quercismo? Isso não o incomoda?
João Manuel - É enorme o preconceito, mas dou risada. O Quércia é um candidato com o perfil para realizar um programa como esse que estou falando. Tem habilidade política, é pragmático, não tem preconceito ideológico. É melhor o Quércia do que livrescos que têm os olhos vedados por ideologias vagabundas.

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