São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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"Já fui chamada de charlatã"

CLAUDIO JULIO TOGNOLLI
DA REPORTAGEM LOCAL

Virgínia Bicudo está com quase 80 anos de idade e é uma das pioneiras da psicanálise em São Paulo. Teve aulas com Melanie Klein, de quem foi amiga, e chegou a ser chamada de "charlatã" –quando a psicanálise era praticamente desconhecida no Brasil. Apontada como uma das mais brilhantes psicanalistas brasileiras, concedeu a seguinte entrevista à Folha.

Folha - Como a sra. começou a se interessar por psicanálise?
Virgínia Bicudo - O que me levou para a psicanálise foi o sofrimento. Eu queria me aliviar de sofrer. Imaginava que a causa do meu sofrimento fossem problemas sociais, culturais. Então me matriculei na Escola de Sociologia e Política. Isso foi em 1935.
Eu tinha conflitos muitos grandes comigo mesma, mas achava que a causa era social. Desde criança eu sentia preconceito de cor. Queria o curso de sociologia porque, se o problema era esse preconceito, eu deveria estudar sociologia para me proteger do preconceito, que é formado ao nível sociocultural.
No segundo ano do curso, com a professora Noemy Silveira, tive contato com a psicologia social. Começei a ler e ali encontrei a psicologia do inconsciente de Sigmund Freud. Aí disse: "É isso que estou procurando".
Folha - E a partir daí?
Virgínia -Saí por São Paulo correndo, perguntando sobre onde poderia encontrar cursos de psicanálise. Aí me disseram que a resposta estava em Durval Marcondes, psiquiatra. Eu o procurei e perguntei sobre o curso. Aí ele falou: "A senhora já pediu permissão a seu pai, para ver se ele deixa a senhora fazer esse curso?"
Folha -Por quê essa permissão?
Virgínia- Precisava da permissão, e o Durval falava que precisava disso porque era um curso que iria lidar com sexualidade, e havia muito preconceito. Quando ele pediu essa permissão eu não falei nada para ele, e disse: "Está bem, na próxima sessão eu trago a permissão de meu pai".
Mas meu pai já tinha morrido. Voltei e na outra sessão afirmei: "Meu pai disse que posso fazer o curso, me deu permissão". Foi asssim que começei entrar na linha de Durval Marcondes.
Folha - E a partir daí?
Virgínia - Durval começou a lutar muito pela psicanálise, queria um especialista internacional aqui. Ele queria um psicanalista da Europa para formar a gente aqui. Mas as pessoas só iam para a Argentina. Durval estava desesperado, até que veio para cá a Adelheid Koch, que chegou aqui em 1936 e começou a trabalhar em 1939, depois que aprendeu o idioma. Eu fiz sessões de psicanálise com Adelheid por cinco anos, a partir de janeiro 1939. Cinco anos depois eu já atendia pessoas, numa sala na rua Araújo, no centro de São Paulo.
Folha - Era difícil ser psicanalista?
Virgínia - Tivemos notícia que no Rio de Janeiro havia intervenção contra psicanalistas e aqui ficamos prevenidos, com advogados, caso houvesse em São Paulo algum incidente. Depois cheguei a fazer várias palestras na Folha, graças ao então presidente, José Nabantino Ramos, um homem interessadíssimo em psicanálise.
Folha - Por que decidiu se mudar para Londres?
Virgínia - Foi em 1955. Houve aqui um conflito muito grande, quando ocorreu um congresso de higiene mental. Professores da cadeira de psiquiatria da USP estavam contra a psicanálise. Os psiquiatras ficaram contra Durval Marcondes, porque ele formava psicanalistas. A psiquiatria oficial não aceitava a psicanálise. Os psiquiatras me chamavam de charlatã, achavam que só médico poderia exercer a psicanálise.
Folha - Em Londres, a senhora teve contato com Melanie Klein?
Virgínia - Tive contato social e profissional. Quando cheguei, não a conhecia. Eu estava no Instituto de Psicanálise de Londres quando a vi. Enviei flores a ela, no dia de seu aniversário. Meu inglês era muito pobre. Então fui no dicionário e tirei o termo "ornament" (ornamento). Ela depois me mandou um cartão agradecendo, e disse que o que mais tinha chamado a a atenção dela fora a palavra "ornament", que não era muito usada.
Assim fui me aproximando dela. Uma vez por mês ela dava um chá em sua casa, quando convidava os psicanalistas de Londres. Eu era a única brasileira. Ela me ensinou muito também da psicanálise das crianças. Em 1959 eu voltava para o Brasil e ela me ofereceu um jantar de despedida. Ficamos cada uma numa ponta da mesa, na cabeceira. Ele disse que numa despedida precisava-se ter intimidade.
Folha - Hoje a sra. estuda física quântica relacionada à psicanálise?
Virgínia - A psicanálise pode fazer benefícios para a humanidade. Se melhoramos nosso psíquico, melhoramos a vida para todo mundo. E hoje me interesso pela física quântica. Podemos reunir a dinâmica da física quântica com a da energia psíquica. Os detritos do átomos têm atração e repulsão, é o mesmo mecanismo da energia psíquica, que tem amor e ódio. Aí temos que falar da entropia. A entropia é a segunda lei do calor. Ela diz que é impossível a transmissão de calor do mais fraco para o mais forte. A Terra recebe calor do Sol, e ele jamais vai retirar esse calor da Terra. Isso não acontece só com os astros, acontece com todos os elementos. Estamos sujeitos a essa lei da entropia, e não estamos conscientes disso. Nossos conflitos emocionais são consequência do desrespeito à lei da entropia.
Folha - Dê um exemplo?
Virgínia - Conflitos entre os seres humanos, conflitos conjugais: é comum e frequente os casais dizerem "você não me ama tanto quanto eu te amo". Se amor for calor, é impossível dois seres amarem com a mesma intensidade. Essa exigência dos seres humanos, portanto, é impossível, é um desrespeito à entropia, nós queremos exigir do corpo do outro.
- A senhora está desenvolvendo essa teoria?
Virgínia - Sim, Freud e Einstein já trabalharam juntos nisso. Einstein coloca suas fórmulas em 1905, quando Freud analisa pela primeira vez uma criança, o pequeno Hans. O menino sofria de fobia. Fobia é distúrbio fóbico, do movimento. Einstein formula o movimento, que desenvolve vida. Os humanos têm esse movimento de atração e repulsão. Psicanálise e física são a maior herança do século 20 para o futuro. (Claudio Julio Tognolli)

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