São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O terror disfarçado em arte

BORIS SCHNAIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O terror disfarçado em arte
A entrevista com João Cabral de Melo Neto, publicada no Mais! em 22 de maio, traz alguns elementos interessantes para o conhecimento de sua poética, mas nela aparecem igualmente várias formulações com que não podemos concordar, e que parecem pedir um comentário. Sobretudo, aquela afirmação de que o “realismo socialista” era válido para os países do Leste europeu, e que Jdanov queria era “que os romancistas e poetas cantassem a grandeza da União Soviética”. Ora, tudo isso poderia ter algum sentido se este “cantar” não fosse obrigatório e não excluísse tudo o mais.
Esta opinião de Cabral nos mostra que alguns de sua geração, e é também a minha, não perderam até hoje as ilusões que dificultaram no Ocidente a compreensão do que estava acontecendo na Rússia. Mas atualmente, depois da publicação de tantos materiais sobre o que sucedeu naqueles anos, não podemos nos calar, nem enfeitar o passado ou ter condescendência com ele.
O que muitos intelectuais do Ocidente não viam, na época, era que o “realismo socialista” não constituía simplesmente uma escola literária ou artística. Sua imposição foi, na realidade, parte de todo um processo de obscurantismo e barbárie.
Portanto, relembremos um pouco os fatos.
Em agosto de 1946, as revistas de Leningrado “Zviezdá” (A estrela) e “Leningrad” foram censuradas publicamente pelo Comitê Central do Partido, divulgando-se ao mesmo tempo um informe de A.Jdanov que se tornaria famoso, no qual havia formulações brutais contra toda obra de arte que se afastasse das normas de um otimismo patrioteiro e simplificador.
No referido informe, fazia-se carga sobretudo contra Mikhail Zóschenko e Ana Akhmátova. O grande ficcionista era definido simplesmente como “hooligan” e a grande poeta, apresentada como meio freira e meio prostituta. A baixeza e brutalidade desses ataques dariam o tom a tudo o que se seguiu.
Houve uma cuidadosa encenação e, segundo vários depoimentos que apareceram com a “glasnost”, escritores de diferentes cidades foram então conduzidos ao Kremlin de Moscou para um encontro com Jdanov e o próprio Stálin, durante o qual se insistiu nas mesmas acusações, e pediu-se a colaboração de todos.
Empreendeu-se uma campanha de imprensa, que se dirigiu essencialmente em duas direções. Os ataques ao “cosmopolitismo” tendiam a isolar mais a Rússia, valorizar as “fontes nacionais autênticas” e combater as influências estrangeiras. Ao mesmo tempo, isso se ligava à condenação do “nacionalismo” em todas as repúblicas não-russas e à honestidade aos demais grupos étnicos, particularmente os judeus, embora por lei todos os cidadãos soviéticos tivessem igualdade de direitos.
Mas o jdanovismo não se limitou à campanha de imprensa. Houve expurgo nas universidades, sessões públicas de crítica aos acusados de desvios, com a presença obrigatória destes, e também processos e mais processos, que resultavam em fuzilamentos e trabalhos forçados. Foram sendo suprimidas as pouquíssimas liberdades conseguidas graças à união de forças contra o nazismo, e o número de presos em campos de trabalho atingiu a mesma proporção da época dos famosos Processos de Moscou na década de 30.
A selvageria do sistema chegou a tal ponto que, um dia, foram presos todos os escritores de língua iídiche e, depois de quatro anos de prisão e tortura, sob a alegação de uma “conspiração sionista”, quase todos fuzilados, inclusive os mais importantes. Diga-se de passagem que eles tinham sido, em sua maioria, stalinistas ferrenhos e defensores daquele mesmo “realismo socialista”. E houve também perseguição feroz a artistas e escritores das demais emias não-russas.
O clima de terror era acompanhado de uma propaganda das excelências do sistema. A literatura só podia ser otimista e exaltar as conquistas no caminho do comunismo, as artes plásticas tinham de criar imagens que prenunciassem aquele futuro radioso, e a música procuraria exaltar as virtudes patrióticas, ser estimulante e popular, sem requintes nem sutilezas. Tudo o mais devia ser erradicado.
Enfim, algo aparentemente tão “literário” como a crítica a duas revistas de cultura constituiu, na realidade, o passo inicial para um retrocesso generalizado, uma verdadeira “descida aos infernos”, cujas consequências se fizeram sentir durante muitos anos.
Sem dúvida a lembrança de todo esse passado faz com que não possamos receber, tranquilamente, referências elogiosas a Jdanov, mesmo quando partem de um grande poeta.

Texto Anterior: Homem infantiliza animais e os transforma em dublês de criança
Próximo Texto: Cartas ao Brasil
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.