São Paulo, terça-feira, 7 de junho de 1994
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Os engenheiros da mentira

CECILIO DO REGO ALMEIDA

Como é óbvio, os engenheiros estão aptos a lidar mais com cálculo e concreto do que com palavras, embora haja exceções que raiam a genialidade, como Euclides da Cunha.
Sem a pretensão de me comparar ao autor de "Os Sertões", nele inspirando-se, que tanto dignificou a engenharia civil, o jornalista e a literatura, sei separar a realidade da ficção.
E posso constatar que, lamentavelmente, alguns órgãos da imprensa e jornalistas as confundem, praticando a engenharia da mentira. A obra pública a que se dedicam, ensejando a suspeita de superfaturamento, não é a hidrelétrica aqui nem a ponte acolá, e sim a mentira impressa.
Fui, recentemente, vítima de duas investidas desses "romancistas".
A revista "Veja" me acusou de grampear os telefones de meu inimigo político Álvaro Dias, em Curitiba e o jornal "O Estado de S. Paulo" deu em manchete que minha empresa foi multada por várias "fraudes" contra a Receita Federal.
As duas reportagens eram falsas e se basearam na imaginação de seus autores, acobertada pela referência à fontes anônimas.
Nas reportagens da "Veja", publicadas em, 20 e 27 de abril, ambas com destaque na capa da revista, não é citada uma só pessoa idônea que me acuse de grempear telefones. A revista não publica uma prova, sequer um indício de que sou criminoso. Há apenas a palavra de um inimigo ao qual interessa aumentar o cacife eleitoral.
Toda reportagem é montada num alegado informe de "um assessor do governador Joaquim Roriz", a quem eu teria entregue as fitas.
O delator não tem nome? Onde está a transparência que todos reclamam? O que pensar das pessoas e da imprensa que, a pretexto de trazer a verdade à luz, se escondem na escuridão?
Nessa história, ainda fui acusado de manter um repórter da "Veja" em cárcere privado do qual, segundo a revista, em marketing espalhafatoso, só foi libertado pela polícia. E ele ainda saiu de minha casa posando de vítima, alegando que convocará a polícia.
A verdade incontestável é que eu próprio chamei as autoridades ao ser acusado de um crime que não cometi.
A revista chega ao cinismo de escrever que, ao invadir minha residência e acusar-me de um crime, estava apenas cumprindo "uma regra elementar do jornalismo, ouvindo sua (minha) versão sobre uma denúncia que o envolvia".
Esse é o nó da questão: era uma denúncia anônima. Em muitos anos de contato com a imprensa nunca aprovei a publicação de acusações sem assinatura e os nome dos acusados em letras garrafais.
Quando, em 1971, me rebelei contra o governador Haroldo Leon Peres por me cobrar propinas, botei meu nome e minha pele no fogo.
O problema é que essas mentiras prosperam. A "Veja" gerou as suas e reproduziu outra, publicada em "O Estado de S. Paulo": a de que minha empresa foi "multada" em US$ 560 milhões pela Receita Federal.
Nada disso aconteceu mas deu manchete no jornal. E tudo, como convém a esse jornalismo canhestro, foi atribuído a anônimos que, ao contrário do ditado popular, revelam o santo mas omitem o milagre.
Saiu no "Estado": "A C.R. Almeida terá de recolher US$ 590 milhões (CR$ 98 bilhões) aos cofres públicos por emissão de notas frias, sonegação fiscal e prática de caixa dois, entre outras fraudes."
Evidentemente quem escreve essas asneiras não sabe o que escreve. Não tem idéia de valores, nem morais nem financeiros.
Tanto é assim que o jornal diz num trecho que a multa era de US$ 580 milhões e noutro que era de US$ 590 milhões e a "Veja", talvez por achar que era muito, abateu para US$ 560 milhões.
Impressa, a mentira se espalha, e a vítima não consegue reparação, exceto se pagar. E foi o que tive que fazer, gastando uma fortuna para publicar na primeira página do "Estado" o meu desmentido.
Na verdade, auditores da Receita em fiscalização de rotina em minha empresa incidiram no equívoco de confundir faturamento de créditos com recebimentos ainda não efetuados, sendo que o devedor é precisamente o governo.
Nem a derrama ousou cobrar imposto sobre um valor não recebido, com a ironia de que o governo estaria me exigindo impostos sobre uma dívida dele próprio.
Falam mal dos empreiteiros mas isso sim que é superfaturamento.
Outro nó da questão é que se a vítima reclama, a imprensa sai pela tangente atribuindo a informação falsa às suas fontes. Mas se é "fonte" anônima, a quem reclamar?
Se a vítima processa o jornal é acusada de atacar a liberdade de imprensa. Encastelada na incompetência e no "denuncismo", essa parcela da imprensa ainda atua com métodos que se assemelham ao de formação de quadrilha.
Ninguém checa essas besteiras antes que sejam impressas? Para que servem os manuais de redação que receitam a confirmação de denúncias de um inimigo contra outro?
Acho que, mais do que a mim, essas mentiras atingem a liberdade de imprensa. Os milhões de leitores passam batido, mas nós, que podemos protestar e escrever artigos como este, sabemos quanto somos vilipendiados, o quanto os manuais de ética são enfeites na parede.
É inegável que essa parte da imprensa, ao trabalhar sem normas técnicas e sem controle de qualidade, não ajuda a passar o Brasil a limpo.
Junto com os exemplares, vende sua dignidade. Com seu "denuncismo", ergue castelos de papel que a mais leve brisa da verdade faz desabar, como uma ponte de areia.
Eu não construo pontes de areia e, como leitor e cidadão, ficaria mais tranquilo se publicações como a "Veja" e "O Estado de S. Paulo" contratassem engenheiros no lugar de certos jornalistas.

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