São Paulo, sexta-feira, 10 de junho de 1994
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Dúvida entre verdade e mentira define o autor

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Tudo em Orson Welles passava pela mentira. Vejamos a célebre história de "A Dama de Shanghai". À beira da falência, Orson Welles ligou para Harry Cohn, o chefão da Columbia, dizendo que tinha uma ótima história.
"Que história?", perguntou Cohn. Junto ao telefone, havia uma banca que vendia livros de bolso. "Chama-se `A Dama de Shanghai"', disse Welles, batendo os olhos ao acaso no romance de Sherwood King.
Harry Cohn mandou o dinheiro de que Welles precisava, comprou os direitos do livro e o filme foi realizado.
Quem conta o caso é o próprio Orson Welles. E qualquer um está no direito de perguntar se isso é verdade ou mentira. É tudo verdade –diria Welles. Porque é essa, precisamente, a idéia que pontua sua obra: a de que tudo é verdade.
Orson Welles (1915-1985) não é o único a fazer da verdade o problema central de sua vida. A ruptura dos anos 40, isso que se convencionou chamar "modernidade" em cinema passa toda por aí: o falso e o verdadeiro, o real e o irreal.
É possível que desde o nascimento do cinema ela tenha existido. Mas os cineastas que vieram do mudo eram dotados de uma espécie de inocência face àquilo que mostravam.
Nos anos 40, essa inocência é questionada e "Cidadão Kane" (1941) permanece como o ícone maior das mudanças que se verificam. Já não se trata de contar uma história, na tradição narrativa do mudo. "Kane" afirma a impossibilidade de contar uma história, de mostrar em imagens quem é um homem: Kane é um labirinto, seu mistério é inatingível.
O mesmo com Orson Welles. A mais perfeita homenagem que se fez a ele vem de Brian De Palma. Em "O Homem de Duas Vidas" (1973) lhe deu o papel de prestigitador: aquele que transforma o irreal em real, que dá consistência à falsidade.
Em seu "Verdades e Mentiras" (1973/75), Welles lança o espectador no centro desse redemoinho. Qual a diferença entre o pintor "verdadeiro" e o falsário, pergunta o filme. Nenhuma, desde que a falsificação seja boa. Ou antes: o bom falsário é um artista tão verdadeiro quanto o original.
Orson Welles não era um farsante que teria se apossado da autoria de "Cidadão Kane", como chegou a sugerir a crítica norte-americana Pauline Kael. Era, sim, alguém que tomava a farsa como questão e a arte como uma espécie de farsa. Todos os seus filmes consistem em negar a idéia do artista demiurgo, um quase Deus que organiza a matéria.
Ninguém melhor para nos introduzir nessa idéia do que o inspetor Quinlan, de "A Marca da Maldade" (1958): se falta uma "verdade" para resolver um caso, ele cria uma. Mas essa falsa verdade interfere na realidade, transforma-a. Essas transformações mesmo acabarão por destruir Quinlan.
Welles faz o papel de Quinlan no filme. Não por acaso: é um artista que debocha da arte e do ideal romântico do artista. Quinlan é ao mesmo tempo megalomaníaco e pobre coitado. Figura magnífica e bêbado. Sábio e idiota. Em síntese, um ator que conhecia muito bem a multiplicidade de papéis que um homem desempenha ao longo de sua vida.
Mito e antimito, Quinlan resume Welles: tudo é verdade desde que exista. E tudo o que se pode transformar em imagem é real. Mesmo o sonho, a ilusão, o falso.

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