São Paulo, sábado, 11 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um mulato assanhado

JOSUÉ MACHADO

O Fernandenrique tem todo direito de se declarar mulatinho. A palavra mulato tem pelo menos três acepções: 1. mestiço da raça branca e negra; 2. aquele que é escuro ou trigueiro; 3. o mesmo que mu ou mulo. É óbvio que ele não se confessou mulo e sim moreninho, trigueirinho.
Pois foi com a liberdade dos poetas, somada à sinceridade que tempera o discurso de nossos políticos, que ele se declarou mulatinho com um pé na cozinha. (O outro pezinho onde estará?) Por causa disso trataram-no como a Jeni do Chico Buarque. Solimar Carneiro, do Instituto da Mulher Negra, disse, segundo esta Folha: "Só se ele é filho de mula. Mulatinho é cruzamento com mula, não com negro."
Observação das mais refinadas. Refinada e sábia. Mulo e mula são animais híbridos e estéreis, filhos de jumento e égua ou de cavalo e jumenta, portanto não podem procriar, ao contrário dos mulatos, cruzamento feliz de negro com branca ou de branco com negra, sim, senhor. Nunca ninguém pôs isso em dúvida nem protestou com tanto furor sociológico/filológico/racial.
Furores à parte, há dúvidas em relação à origem da palavra mulato, embora a maioria dos especialistas a considere a mesma de mulo/mula, como Aurélio e Antenor Nascentes, entre outros. Aurélio registra: "mulato, do espanhol, mulato, de mulo por ser mestiço o mulato". E Antenor Nascentes, "De mulo e sufixo ato; para o mestiço humano houve comparação com o híbrido animal". Para eles, portanto, mulo ou mu e mulato têm a mesma origem latina: mulus (macho e também burro ou homem estúpido).
Culpa dos árabes
Mas o professor Silveira Bueno, em seu "Grande Dicionário Etimológico Prosódico de Língua Portuguesa" discorda. Acha que as palavras mulato (mulo ou mu) e mulato (homem) têm origens diferentes. E explica-se bem, atribuindo a origem da palavra mulato (mestiço humano) ao árabe: "Do árabe muallad ou como grafa Lammens `mowallad: aquele que é nascido de pai árabe e de mãe estrangeira, ou de pai escravo e de mãe livre. Penso ser daí e não de mulus que vem mulato' (mulâtre = mestiço humano, em francês). Por essa razão é que damos étimos diferentes para os dois homônimos. Foi justamente essa homofonia que levou todos os autores portugueses e brasileiros a idéia errônea de pensar que mulato, mestiço, seja a mesma palavra mulato, muacho, burro de carga. A passagem de Gil Vicente sempre invocada para documentar o verbete mulato: `Se beato imaculato me emprestasse o seu mulato mas não sei se quererá' (Clérigo da Beira) serve apenas para o muacho, para o mu, e não para o descendente de branco e negra."
Nem importa muito a origem da palavra mulato. O que importa é que a acepção de mestiço humano predominou de tal forma que o significado de mulato/mulo/mu tem tanta força quanto a Justiça contra Collor, Fiuza e os outros. (Além do mais, por que se compararia o mulo/mu –animal híbrido, estéril, repetimos– com o mulato e a mulata, nem um pouco estéreis, como se vê por aí?!) Sobretudo, não há risco de ninguém confundir a mulata requebrante com a mula teimosa.
O melhor da conversa mulatal é que a sorridente declaração do Fernandenrique representa uma confissão indireta de amor ao povo, a que ele pertence como igual e que muito quer ajudar se eleito: para variar, grandes ladrões em cana, preços contidos e salários liberados. Seremos todos felizes com um mulatinho assim na presidência, não é mesmo?

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em Línguas Neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

Texto Anterior: Aos 36, Flávio Rocha ainda recebe mesada
Próximo Texto: Enéas volta com proposta de intervenção na economia
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.